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Entrevista | “Meu filme é latino-americano”: Márcia Faria fala sobre a luta contra a ditadura no continente e a importância da memória em “À Procura de Martina”

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • 9 de jun.
  • 6 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, a diretora discutiu como o longa, que é uma coprodução entre Brasil e Uruguai, entrelaça os efeitos das ditaduras argentina e brasileira.

Divulgação


Lançado no último dia 05 nos cinemas, À Procura de Martina é o mais novo representante da safra de filmes brasileiros e latino-americanos que discutem as consequências nocivas das ditaduras implantadas no continente entre os anos 1960 e 1980. O filme é dirigido por Márcia Faria e estrelado pela atriz argentina Mercedes Morán como a personagem-título, que há décadas procura pelo seu neto, o qual nasceu em cativeiro durante a ditadura argentina, enquanto começa a sentir os impactos iniciais do Alzheimer. Sua busca o leva ao Rio de Janeiro, onde encontra informações que indicam que seu neto foi adotado por um falecido militar argentino e sua esposa brasileira.


O Oxente Pipoca pôde entrevistar Márcia Faria, que falou sobre como o longa se distingue de outras produções brasileiras que tratam da ditadura ao se encaixar num panorama mais amplo da América Latina – destacando inclusive a necessidade dos brasileiros se verem mais como latino-americanos. Ela também comentou sobre a perda da memória de Martina por conta do Alzheimer e como isso se entrelaça à necessidade de resguardar a memória dos crimes cometidos nessas ditaduras para que eles não se repitam. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): A ditadura é um tema recorrente no cinema latino-americano. Não tem como não pensar em “Ainda Estou Aqui” por causa do buzz, mas temos vários outros, como “Argentina 1985” e “A História Oficial” da Argentina, “Uma Noite de 12 Anos” do Uruguai ou “No” do Chile. Mas o que me chamou a atenção em “À Procura de Martina” foi trabalhar esse cruzamento das realidades argentina e brasileira no que se refere às suas ditaduras, isso é algo que vi poucos filmes no continente fazerem. O que te motivou a construir essa história ambientada entre os dois países?


Márcia Faria: Isso é um pouco clichê de se dizer, mas a gente enquanto nação é muito isolado pela questão da língua. Falamos português enquanto o restante do continente fala espanhol. E eu sempre tive vontade um pouco de trabalhar com talentos que que tão aqui do lado. A Mercedes Morán é uma atriz maravilhosa, assim, sensacional que por sorte topou fazer o filme. Eu acho que estava pensando em como que a mistura entre as atrizes brasileiras e argentinas trouxe para o filme uma identidade muito particular, e muito me alegra de que tenha acontecido dessa forma.


Quando comecei a tomar conhecimento da história argentina e também da nossa vivência aqui, da ditadura brasileira, eu senti muita vontade de fazer um certo espelho entre uma história e outra. A Argentina sempre me deu muita admiração pelo que eles conseguiram fazer lá com uma história tão cruel como foi a da ditadura militar. Conseguiram fazer um processo de justiça e de preservação da memória, e teve essa luta incansável das avós da Praça de Maio por reaverem esses netos que ainda continuam desaparecidos, sequestrados, sumidos. Então, tenho muita admiração por isso.


Por outro lado, pensar o Brasil... ainda que, que, a gente tenha a comissão da verdade, que foi um passo incrível, a gente não tem um processo de justiça. Muito pelo contrário, né? Quando a gente fala sobre ditadura, muitas vezes existe uma retórica assim: "Não, deixa isso para lá, vamos olhar para o futuro". E, para mim, a gente precisa olhar para o nosso passado para poder entender melhor o nosso futuro.


Eu acho que a gente tem filmes maravilhosos já sobre ditadura. O Para Frente Brasil é um filme do meu tio, do Roberto [Farias], meu padrinho, e foi censurado. Ele seria lançado em 1981, mas foi censurado e só foi lançado em 1982. E esse filme, para ele não desaparecer, meu pai, Rivanides Faria, que é produtor do filme, pegou as latas de negativo do filme, distribuiu em várias casas de amigos, porque havia essa ameaça de que eles iam pegar e destruir o negativo do filme. E quando ele foi ao cinema, havia ameaça de bomba no cinema. Então foi, é, uma situação muito, muito distópica.


E outros filmes vieram depois disso para falar logo na reabertura [política]. E eu acho que agora a gente volta a olhar para isso. O meu filme tá dentro desse lugar, apesar de falar muito da ditadura argentina, é um olhar de uma de uma avó da Praça de Maio que tá perdendo a sua memória, mas que vem ao Brasil, esse país que a gente está falando que não, fez o seu trabalho de casa. Eu acho que não é coincidência que, depois de 4 anos da extrema direita, a gente volte a falar disso. É importante falar e olhar para isso. É importante que os jovens, como foram ao cinema ver Ainda Estou Aqui, vejam o que aconteceu com o Brasil, para que isso não se repita.

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Filmes que lidam com o tema da memória sempre são muito sensíveis para mim, por ter uma avó que vem perdendo a memória nos últimos anos e que hoje mal me reconhece. Como você quis trazer essa questão do Alzheimer de Martina para o filme e ligá-lo ao tema da ditadura argentina e das Mães da Plaza De Mayo?


Márcia Faria: Tem uma coisa que eu gosto do filme, que me parece original nesse sentido, é que ele trata isso de uma forma muito pessoal, entendeu? Ele não tem uma bandeira, não é um filme panfletário, ele fala isso de uma maneira muito individual para falar do coletivo. Isso eu acho que é um grande acerto do roteiro da Gabriela Amaral Almeida, que traz toda a complexidade da política internacional, da política brasileira, assim, pra um âmbito muito pessoal e que te permite se conectar muito com essa com essa protagonista, com esse personagem.


O filme começou muito com essa vontade política, e eu também tenho a minha mãe, a quem o filme é dedicado. Minha mãe já tem Alzheimer há mais de 10 anos. E o filme também demorou muito para ser escrito Foi um processo longo, uma gestação muito longa. E durante esse processo eu fui colocando a minha vivência com ela dentro do filme. Então, ele passou de um filme muito político para um filme muito pessoal. Acho que ele é um pouco essa mistura, né, e de como que o individual também se faz político.


Então, ele é uma metáfora que serve muito bem para falar de todas essas camadas, desse corpo memória, é como se ela se transformasse no próprio arquivo da história dela, e esse arquivo está sendo deletado. A minha opinião tem a ver com a cena do final, dos arquivos. Foi muito curioso essa cena, porque ela não estava escrita assim. Ela era uma cena dentro de um hospital e a gente estava procurando uma imagem mais forte para isso, e tinha filmagem no hospital. E eu fui vendo os espaços do hospital e a gente encontrou esse arquivo praticamente pronto assim, num dos porões assim do hospital. E acabamos filmando lá, substituímos as camas pelos arquivos e pelos números. Então tem uma imagem muito forte dessa sensação da ditadura, de que as pessoas viram números, arquivos, pastas, dossiês.

 

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Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Temos vivido nos últimos anos um movimento de negação à violência e repressão das ditaduras, mesmo num país que julgou seus militares, como foi o caso da Argentina. Como filmes como “À Procura de Martina” podem ajudar a lançar luz sobre essa temática para que não nos esqueçamos do que foram essas ditaduras para os países latino-americanos?


Márcia Faria: Eu acho que essa ascensão da extrema-direita no mundo é mais um motivo para a gente continuar fazendo, falando e lembrando de que ditaduras como a da Argentina, como a do Brasil, como a do Chile, como a do Uruguai, que é coprodutor do filme, não podem voltar a acontecer. Então, eu acho importante que isso seja relembrado sempre. Não sei se os filmes mudam alguma coisa sozinhos, mas se o filme tiver a capacidade de tocar alguém que for ver, dessa pessoa sair dali com perguntas, sair dali com pensamentos, eu acho que ele já cumpriu o seu propósito. Então, eu espero que as pessoas saiam com o filme do cinema. Eu acho que isso é o maior presente.

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, sempre pedimos aos nossos entrevistados indicações de filmes nacionais que achem que o público deva assistir. Mas vou abrir uma exceção aqui, considerando a natureza bilíngue do longa, e te pedir indicações de filmes brasileiros e de outros países latino-americanos também. Quais você recomendaria para o nosso público?


Márcia Faria: Dos filmes chilenos tem Glória, que com a Paulina García, que é uma atriz sensacional. Tem o filme A Noiva do Deserto, que é de duas diretoras argentinas [Cecilia Atán e Valeria Pivato], que que também é maravilhoso. Tem os filmes da Lucrecia Martel, que já é um ícone que as pessoas conhecem: La Ciénaga, La Niña Santa, A Mulher Sem Cabeça. Tem um filme que eu acho que é do Paraguai, se chama As Herdeiras, que é maravilhoso também.


Enfim, são muitos, é porque a gente não tem a possibilidade de ver. E isso é ruim, espero que cheguem mais aqui, que a gente consiga fazer mais esse intercâmbio. As pessoas me perguntam: "Mas seu filme é argentino? Seu filme é brasileiro?”. Meu filme é latino-americano. É isso, a gente é latino-americano.

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