Entrevista - Ravel Andrade e David Santos conversam sobre "Serra das Almas"
- Gabriella Ferreira
- 23 de abr.
- 11 min de leitura
Atores fazem parte do grupo protagonista do filme e discutem, em conversa com o Oxente Pipoca, temas como masculinidade tóxica e cinema brasileiro.

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Trazendo à tona complexidades e dilemas, o filme Serra das Almas coloca no protagonismo dois atores que trazem à tela personagens profundos, repletos de nuances, em uma trama onde um roubo de joias reúne um antigo grupo de amigos desajustados, fazendo com que os resultados sejam catastróficos.
Ravel Andrade e David Santos são comandados por Lírio Ferreira (cuja entrevista você confere aqui), interpretando Gislano e Charles, e se entrelaçam com os desafios de um país marcado pela violência, pelo caos e pela busca por resistência. Com performances intensas e emocionantes, ambos conseguiram dar vida a personagens que refletem as complexas tensões sociais e existenciais de um Brasil pós-pandemia.
Em entrevista ao Oxente Pipoca, os dois atores contaram como construíram seus papeis no filme, o impacto que essa obra teve em suas trajetórias e como o cinema pode, de fato, transformar e resistir, mesmo em tempos difíceis. Confira a entrevista na íntegra:
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Queria começar perguntando para o Ravel, porque eu vi uma entrevista sua, acho que foi no Festival do Rio, em que você falou que o filme te ajudou a sair de papeis que estavam muito parecidos, né? E eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso, como o filme foi importante para você como artista nesse sentido.
Ravel Andrade: Eu acho que o filme me ajuda a sair do lugar comum. Começa, pelo cinema do Lírio, é um cinema transgressor, marginal, e eu nunca tinha trabalhado com um diretor como ele. Acho que também tem uma questão geográfica envolvida. Eu sou do Sul, trabalhei a vida inteira no Sudeste, e acho que ter ido para Pernambuco, ter feito cinema com a galera de Pernambuco, me ajudou a sair desse lugar comum.
Não foi só a direção do Lírio, mas as relações, a temperatura das pessoas. A maneira como as pessoas se expressam, tanto o fotógrafo quanto a galera da Graça, os atores, a galera do figurino... Eu fui sendo contaminado, no melhor sentido, por essas pessoas, por essa temperatura diferente.
E, em cena, o Lírio realmente instigava a gente muito. Eu nunca tinha passado por isso antes, nunca tinha encontrado um diretor que me instigasse tanto, que colocasse mais lenha na fogueira para tirar o máximo da atuação. Para mim foi um privilégio poder ter feito isso.
O Lírio é um diretor com quem eu sempre quis trabalhar. Sempre assisti aos filmes dele e falava: "Cara, um dia eu quero fazer esse cinema, um cinema que sai sangue." E encontrar ele nesse ponto da minha carreira, agora que me considero um cara mais maduro, que já experimentou vários diretores, foi muito benéfico para mim. Porque encontrei uma nova possibilidade de atuar, uma nova poesia, um novo jeito de dar o texto, com parceiros de cena que também estavam completamente sintonizados com essa viagem do Lírio.
E é um privilégio. Acho que é por isso também que a gente precisa descentralizar as coisas, para que a arte se torne realmente mais diversa. O nosso Brasil é tão grande, um país continental, com tantos cinemas diferentes, e a gente fica muito no Sudeste. A televisão acaba trazendo tudo para cá, meio que colocando tudo dentro dessa realidade. Mas, na verdade, o Brasil é muito vasto.
Eu tive um privilégio muito grande, uma oportunidade de experimentar esse cinema e esse jeito de atuar que eu nunca tinha vivenciado. E isso me abriu o meu campo artístico. Voltei para casa muito mais criativo, com muito mais possibilidades de arte. Acho que não foi só na atuação, foi em tudo. Foi na poesia do David, nas conversas com o Lírio, nas histórias que ele contava, nas histórias da equipe. Eu me senti privilegiado de poder estar ali, experimentando um cinema que não se faz no Sudeste.
Espero que a gente se misture cada vez mais e possa trocar essas experiências, essas visões de arte.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): David, seu personagem em Serra das Almas tem várias camadas, ele começa de uma forma e depois explode. Eu diria que ele tem algumas das cenas mais intensas do filme. Como foi a sua preparação para viver um personagem tão complexo e com essas cenas tão fortes?
David Santos: A minha preparação foi de um grande abraço, sabe? Um grande abraço de todo mundo, principalmente desse rapaz que está falando com a gente, o Ravel Andrade, que é o meu amor agora e para sempre. Porque a gente chegou nesse grande mix de talentos. A Maria Clara Escobar fez uma produção dela em São Paulo, ela trouxe grandes talentos de várias partes do Brasil, botou todo mundo numa serra e a gente começou a trabalhar junto.
Então, tem o Ravel, que é do Sul, tem a Mari lá do Rio, tem o Vertinho, que é de Arcoverde, tem eu do Ceará, tem o Jorge lá do Paraná. Então, essa junção e essas várias visões, essas várias poesias, essas várias vontades de contar a mesma história, fez essas camadas poderem existir, sabe? Fez essas camadas florescerem e a gente poder energizar esses personagens de uma maneira tão intensa, né?
Eu acho que todos os personagens ali, não só o Charles, não só o meu personagem, mas eu acho que todo mundo ali teve essa gama de camadas e essa energia que vem do coletivo. Para o Charles, a relação com a palhaçaria já vem da minha profissão. Eu não sou palhaço de rua, mas dentro da minha pesquisa, eu pesquiso bufonaria, uma palhaçada mais desgraçada mesmo. Eu até cito que queria fazer uma palhaçada que chuta a canela das crianças, tosse na cabeça das velhas. Então, essa é a palhaçada que eu me interessava de pesquisar e levar isso para dentro do filme, levar isso para o Charles.
É como você andar munido de alguns truques, de algumas coisas que são um pouco da malandragem do palhaço e você poder usar seus truques. Eu levei muitos dos truques da palhaçaria para dentro dessa construção desse personagem, porque foi o primeiro filme que eu fiz aqui fora do Ceará também. Então, é um filme que eu percebi logo cedo que seria um filme de personagens, um filme que os personagens se destacariam. O personagem do Gislano, o personagem da Vera, todos os personagens têm ali tantas camadas que se destacam de uma maneira que a gente fica meio nebuloso. Essa coisa da névoa. Fica meio nebuloso: quem é o protagonista? Que história estamos acompanhando? Estamos acompanhando todas aquelas histórias.
Então, a gente tem ali uma oportunidade, eu vi ali uma oportunidade de experimentar mesmo e tentar me debruçar sobre um personagem que conversasse com o público, que entregasse tanto seus defeitos da maneira mais explosiva possível, ou da maneira mais bufônica, mais poética, como mostrasse também suas fragilidades, suas fraquezas, sua humanidade. Então, se a gente tem a oportunidade de mostrar esses dois lados, essa fraqueza e esses defeitos, a gente tem ali um pouco da atenção do público para o nosso personagem. Eu acho que todos esses personagens do filme têm muito bem desenvolvidas essas características. Então, o público fica com a gente, porque ele ama e desama ao mesmo tempo, sabe? Ele ama e odeia ao mesmo tempo.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Isso que você falou é bem real. Eu senti isso também assistindo ao filme e percebi como a relação entre os personagens masculinos é construída, assim como a relação entre os personagens femininos. A relação dos homens é marcada por desconfiança, o que gera violência, enquanto as mulheres se unem no meio do caos para se defender. Eu queria saber como vocês acham que o filme traz essa crítica ao modelo de masculinidade que temos, e como isso ressurge na história do filme. Isso foi trabalhado com vocês de alguma forma durante a construção dos personagens?
Ravel Andrade: Sim, eu acho que fica bem claro ali, quando a gente termina o filme sem os personagens masculinos e as mulheres unidas conseguindo chegar à liberdade. Mas eu acho que essa coisa do cárcere, de botar a mulher no cárcere, são muitos símbolos ali, né, que demonstram essa diferença entre o masculino e o feminino. E a gente percebe que na sociedade a gente tem uma lealdade masculina, os homens são mais leais a eles mesmos. Porém, com uma violência muito grande quando essa lealdade é posta em cheque.
Então, acho que a nossa construção desses personagens vem dessa volta, do passado, de como eles se comportavam na infância, o que influenciou eles na infância, como era essa amizade na infância. O Charles e o Gislano faziam o personagem do Jorge de capacho, mas, enfim, quando a gente construiu esses personagens, isso já estava na nossa cabeça, essa questão masculina. Eu até falei agora numa outra entrevista sobre a série Adolescência, que também trata um pouco disso. Eu acho que nosso filme trata disso também, e a gente coloca isso na tela, na história, uma coisa que permeia o filme todo e que, quando chega nesse final, você fala: "Bom, é exatamente o que acontece na nossa sociedade, né?"
Eles estão ali numa cidadezinha do interior, você vê que os homens são muito agressivos, são muito sem paciência, eles pensam no poder o tempo todo. Eles querem poder, querem ficar ricos, lidam com armas facilmente, dão tiros, matam, e as mulheres, pelo contrário, elas se cuidam. A Vera, ela leva uma água, ela tenta cuidar. A personagem da Júlia, ela conversa com a personagem da Pali. Elas falam o que estão sentindo, a personagem da Pali, ela desabafa com a personagem da Júlia, ela xinga a personagem da Júlia, mas ela fala o que está sentindo. Diferente dos personagens masculinos, que são completamente misteriosos. Você vê, tem mistério o tempo todo, quando eles se olham e quando eles contam uma piada um para o outro, você não sabe se aquilo tem veneno ou não.
Então, acho que sim, essa coisa do masculino e feminino e essa podridão do masculino está no filme o tempo todo. E fico muito feliz que você tenha, claro, percebido isso. Eu acho que o público, de maneira geral, percebe isso. Acho que isso é uma das questões que a gente coloca. E acho que o Lírio coloca aquela vaca também no final, para mostrar o poder da fêmea, a grandeza da fêmea. Ela está ali, os caras estão num mar de sangue naquele corredor, todos mortos, e aquela vaca ali imperando, em pé, daquele tamanho, com aquele peso. Acho que é um filme que fala assim, apesar de ter sido feito e escrito por um homem, foi escrito por uma mulher. Então, ele discute isso realmente.

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David Santos: É muito forte que, além dessa sororidade masculina, que já é inerente à nossa sociedade, existe entre esses três personagens — o Ricardo, o Gislano e o Charles — uma união meio cármica também. Eles acidentalmente matam um trabalhador, e esse ato firma ali um pacto. Então, essa união do Charles e do Gislano, em algum momento, pode ter virado uma união de amor, de um pelo outro, e que a traição, a deslealdade, provoca algo mais passional entre eles. Mas acho que essa ligação entre eles é muito cármica, é quase uma coisa de medo, uma lealdade baseada sempre no medo do outro revelar alguma coisa ou fazer alguma coisa comigo. Então, tem ali uma tensão, esse mistério. Eles não conversam, não falam sobre o que estão pensando ou sentindo. São tudo conversas nas entrelinhas, mas nada diretamente.
Já as meninas não, as meninas não têm essa conexão, esse pacto, mas, talvez, carmicamente, elas acabam indo para a mesma casa e, ali, essa união passa a ser a solução para as vidas delas. Passa a ser a saída, elas se unem e fazem essa revolução.
É engraçado, assim, porque dentro do set, a gente tinha um fotógrafo homem, um diretor homem, então a gente tinha momentos de muita testosterona, sabe? Um negócio de criação muito testosterônico. Mas ao lado desses dois, tinha a primeira assistente de direção, que eu acho que é uma das melhores do Brasil, que eu amo, que é a Gabi Ribeiro. E ela botava esses dois caras assim, tipo, na mãozinha dela e dizia: "Vamos, ó, é lógico. Bora." E aí, as coisas se resolviam, entendeu? E isso deixava o filme ainda mais forte. Então, tinha esse impulso pela testosterona, mas o que organizava a gente ali era ainda a energia feminina.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Como vocês esperam que o filme reverbere nas pessoas que forem assisti-lo?
Ravel Andrade: A gente espera que o filme abra discussão, sobre essa masculinidade tóxica, essa testosterona muito agressiva. Pelo menos em relação aos nossos personagens, ao meu personagem, mas à relação do meu personagem com o personagem do David. A gente espera que as pessoas discutam sobre isso, que elas assistam o filme, que elas gostem do que elas estão assistindo, mas que, principalmente, isso abra uma discussão sobre o masculino, sobre a maneira como a gente lida com os nossos sentimentos.
E a gente espera que as pessoas saiam de suas casas e vão ao cinema para prestigiar o cinema brasileiro, que está num momento tão bom. É mais um filme diverso, é um filme que está naquele universo do Lírio, que é um dos universos que eu, tenho muita paixão assim, essa loucura poética dele. A gente espera que chegue nas pessoas e que as pessoas se interessem por aquilo ali e curtam o trabalho que a gente fez com tanto esforço, com tanta coletividade. É um filme extremamente coletivo, é quase que uma peça teatral ali, quase que uma tragédia que a gente encena, encena em cena, em frente às câmeras e eterniza ali no filme.
David Santos: Eu penso muito como o Ravel, eu acho que se o filme abre uma discussão, eu acho que é muito mais saudável para o filme, para a vida do filme, e é o que importa também para nós enquanto trabalhadores da arte. Se a gente quer, longe de trabalhar só no pensamento do entretenimento. Mas eu quero também, eu quero muito que as pessoas saiam de dentro da sala de cinema e digam: "Caralho, isso aí é rock and roll". Isso é rock and roll de escancarar mesmo, escancarar essa performance masculina tóxica e dizer assim: "Caralho, isso aí está tudo errado". Então vamos fazer um outro caminho.
Isso aí, é um filme que já mostra resultados. Adolescência mostra como referência, ela mostra ali um resultado desse impacto na infância ainda, mas Serra das Almas faz três homens que são resultados dessa cultura misógina, essa cultura machista, essa cultura baseada no poder, baseada na violência, sabe? De conseguir conquistar como os homens das cavernas, é o tacape. Dá um tacape na cabeça e arrasta a figura. Então, é isso, é uma denúncia a essa performance masculina que é dada quando se nasce no mundo binário, que é o homem ou a mulher. Então, o homem ele reproduz esse tipo de comportamento e a mulher reproduz esse tipo de comportamento.
E a gente já está vivendo em 2025, que isso já não está mais cabendo tanto. É igual os personagens, nós seres humanos somos também cheios de camadas, então a gente precisa alinhar as nossas camadas e deixar quais são as melhores camadas para deixar expostas.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Agora uma pergunta que a gente sempre faz aqui no Oxente Pipoca com todo mundo que a gente entrevista, que é pedir uma dica. Pode ser uma dica de um filme que vocês assistiram recentemente e que gostariam de dedicar para as pessoas que acompanham a gente, ou até um filme favorito de vocês, que não seja o que a gente está falando hoje, no caso Serra das Almas, que vocês indicassem. Pode ser um favorito, pode ser algo que vocês assistiram e gostaram e que queriam recomendar para o nosso público.
Ravel Andrade: Eu assisti vários filmes maravilhosos, eu acho que o Brasil, o cinema nacional, ele está realmente incrível assim. Tem um filme que o David fez, que é o Motel Destino, do Karim [Ainouz], que é um ótimo filme. Mas eu queria indicar o filme Manas, da Marianna Brennand, que é um filme incrível, também fala de um lugar específico ali do Brasil, se passa no Pará e mostra essas realidades brasileiras que vêm aparecendo assim, né, pro Brasil, Eu acho que o cinema não tá mais uma coisa tão de um lugar só, eu acho que a gente consegue conversar com esse Brasil inteiro. Então, é um filme que me marcou muito, acho que é um filme belíssimo assim, com atuações incríveis. Então, indicaria o filme Manas, eu acho que também vai entrar em cartaz por agora.
David Santos: O filme que eu tenho para indicar é um filme que lançou agora recentemente, já tá nos cinemas por aí também, que chama O Melhor Amigo, de Allan Deberton. É um filme muito divertido, eu amei, eu ri demais, eu me diverti. Eu acho foda e isso, né? Cinema cearense. É um Ceará massa, um Ceará LGBT, um filme colorido, um filme divertido. Assim, eu tô falando com essa empolgação toda porque é isso, eu sinto falta às vezes de que o nosso cinema traga histórias animadas também, sabe? Histórias que a gente consiga se emocionar, se animar e se divertir, sem sair pesado dentro da sala do cinema, sem sair com a cabeça deste tamanho, sabe? Então, acho que é um filme muito massa. Eu admiro Allan desde o Pacarrete também, sou muito fã do Pacarrete.
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