Crítica | Ariel (Olhar de Cinema 2025)
- Vinicius Oliveira
- há 3 dias
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Lois Patiño filma a matéria do sonho e usa a metanarrativa do universo de Shakespeare para discutir nossa própria existência.

Seria um esforço hercúleo – e inútil – tentar rastrear todas as adaptações já feitas das obras de Shakespeare na história do cinema. Das adaptações seminais de Laurence Olivier, passando pelas reinterpretações de Akira Kurosawa até releituras contemporâneas e nos mais diversos gêneros (como a comédia romântica), o legado do dramaturgo inglês não é apenas atemporal, como transcende quaisquer barreiras físicas.
É se aproveitando dessa universalidade que o diretor espanhol Lois Patiño resolve borrar as linhas entre realidade e ficção, Patiño faz a atriz Agustina Muñoz interpretar uma (suposta?) versão ficcional de si mesma, a qual viaja para a ilha portuguesa de Faial para participar de uma adaptação de A Tempestade, a última peça de Shakespeare, interpretando Ariel. No entanto, ao chegar lá, ela se vê num grande palco em que os habitantes da ilha se revelam mais do que atores encenando as peças shakespearianas, mas os próprios personagens destas obras.
Existe uma forte carga onírica em Ariel desde seus minutos iniciais, que brincam com a possibilidade das portas da realidade se irromperem neste mundo de aparentes sonhos que regem a obra. Trata-se de um longa fortemente sensorial, que conduz essa carga onírica através do uso de cores (o púrpura que abre e fecha o filme) e também de sobreposições entre cenas, como na sequência da “tempestade” durante o percurso de Agustina até Faial. Essa carga sensorial também advém da própria ilha em si, cujas paisagens naturais e atmosfera – em especial no ato final, onde saímos em definitivo do seu espaço urbano – contribuem ainda mais para esse aspecto fantasioso e de sonho.

Esse universo de estranhamentos vai se apresentando cada vez mais gradativamente até ser absorvido por Agustina – que ainda assim se mantém a única autoconsciente ali – e também por nós, espectadores. Há algo de divertido em ver os cidadãos comuns encenando peças como Hamlet, Macbeth, Romeu e Julieta ou a própria A Tempestade, e essa leveza se mantém mesmo após o filme introduzir uma natureza mais densa das suas reflexões, discutindo se essas pessoas (ou personagens) estão vivos ou mortos, e se há alguma capacidade de se libertarem desses papéis que lhe foram impostos.
Patiño não está interessado em oferecer respostas e, de fato, elas são irrelevantes depois de certo tempo. Isso pode afastar uma parcela do público, e há momentos em que a obra se ancora demais nessa realidade um tanto abstrata, mesmo quando oferece um fio narrativo através da jornada dos personagens para se “libertarem” de seu criador. No fim, Ariel parece mais interessado em discutir a condição de nossa existência e do nosso suposto livre-arbítrio: afinal de contas, somos mesmo livres para tomar as nossas decisões ou nossas vidas são regidas por Deus, destino, o que quer que seja? Ao escolher terminar num final ligeiramente ambíguo, o diretor prefere deixar a resposta conosco...ou nos textos de Shakespeare.
Nota: 3.5/5