Crítica | Salomé (Olhar de Cinema 2025)
- Vinicius Oliveira
- há 3 dias
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Transgressão e a batalha entre o bem e mal sob uma ótica queer.

Como se usa a forma fílmica para indicar um determinado discurso? O advento de um cinema mais “politizado” nos últimos anos – seja ele negro, feminista, LGBTQIA+, etc. – não implicou necessariamente em uma politização da linguagem cinematográfica, com obras que muitas vezes se prendem ao texto para anunciar suas intenções sem, no entanto, materializá-las na forma. Entretanto, ocasionalmente surgem produções como Salomé, políticas e revolucionárias em todos os seus aspectos e não apenas em suas intenções.
Dirigido por André Antônio, o longa apresenta Cecília (Aura do Nascimento), modelo em ascensão que, depois de uma temporada em São Paulo, retorna à Recife, sua terra natal, para passar o fim de ano com sua mãe (Renata Carvalho). Atraída pelo vizinho e amigo de infância João (Fellipy Sizernando), Cecília se envolve em uma relação com ele, que a introduz a um tipo de loló diferente do habitual, mas que está ligado a figuras de origens sinistras, as quais de alguma foram se conectam a ela através da figura mítica de Salomé.
Descrita como luxuriosa e amaldiçoada, Salomé representa um tipo de figura muito (preconceituosamente) associada aos corpos trans e queer no geral. Talvez por isso André Antônio resolve brincar e fabular com essa ideia, explorando a vida e a identidade de Cecília – e também sua relação instável com João – para culminar em seu final. Se o filme consegue transcender o discurso e atingir a forma, é justamente pelo aspecto de estranheza do qual está dotado seus minutos iniciais, que abrem com um desfile de moda do qual Cecília participa e já traz uma noção de que estamos numa espécie de realidade paralela à nossa. O filme consegue simultaneamente criar um universo muito relacionável e pé-no-chão (em especial na relação da protagonista com a mãe ou com a prima) e de muita naturalidade (ao dar o protagonismo a atrizes trans como a própria Aura, além de Renata e Danny Barbosa), mas que aos poucos flerta com o cinema de gênero, em especial o horror, ainda que só o abrace por completo nos minutos finais.

Portanto, a direção de André Antônio se sobressai e muito em relação a outras obras nacionais de caráter mais politizado dos últimos anos, ou mesmo aquelas que exploram o cinema de gênero. Muito da força do filme vem de Aura, com seu olhar penetrante e hipnotizador (talvez um dos mais expressivos e assombrosos que vi nos últimos tempos) e que sustenta o filme mesmo quando sua personagem passa por transformações que nem o texto nem a encenação dão conta de justificar. Infelizmente seu parceiro de tela Fellipy Sizernando não atinge os mesmos níveis de latitude dramática, mas um dos grandes méritos do filme é não se acanhar em explorar seus corpos e a transgressão que os cerca, como na primeira cena de sexo dos dois, talvez uma das melhores, explícitas e mais bem-filmadas que pude assistir recentemente.
Mesmo que não se encaminhe tão solidamente para a sua conclusão – ainda que olhando em retrospecto, não pudesse haver outro final possível –, Salomé é a mostra de um cinema que provoca e transgride em cada um de seus níveis. Se é para ser revolucionário, se é para quebrar as normas do cinema (inclusive em termos de heteronormatividade), então que advoguemos por mais filmes como Salomé.
Nota: 3.5/5