A atriz conversou com o OP? sobre cinema brasileiro, protagonismo feminino, conservadorismo, novos fãs e sua relação com Rogério Sganzerla.

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No dia 21/02 a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, exibiu pela primeira vez em 4K o filme A Mulher de Todos, escrito e dirigido por Rogério Sganzerla em 1969 e restaurado por Débora Butruce. O processo de restauração digital em 4K contou também com recursos do edital de Digitalização de Acervos 2023 da Lei Paulo Gustavo pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo
Com lançamento em plena ditadura militar, o longa, estrelado por Helena Ignez, conta a jornada de Ângela Carne e Osso, uma protagonista feminina, sensual, libertária e rebelde, se tornando imediatamente um clássico do cinema nacional. Também no elenco estão grandes nomes da atuação brasileira como Jô Soares, Antonio Pitanga, Paulo Villaça e Stênio Garcia.
Comédia satírica que faz uma crítica ácida à sociedade ocidental, A Mulher de Todos foi o segundo filme de Rogério Sganzerla, lançado um ano após O Bandido da Luz Vermelha – no qual Helena Ignez também brilhou como protagonista. Além da colaboração artística, Sganzerla e Ignez compartilharam uma parceria na vida pessoal, permanecendo casados até a morte do cineasta.
O Oxente, Pipoca? teve a imensa honra de conversar com Helena Ignez, uma das mais icônicas figuras do cinema brasileiro, sobre o filme. Confira a entrevista na íntegra:
Aianne Amado: Como que tem sido para você reviver esse filme e sua jornada com esse filme? Vi, por exemplo, que você foi divulgar a nova versão na Cinemateca.
Helena Ignez: A experiência foi maravilhosa. Maravilhosa. Foi a Cinemateca cheia, principalmente jovens, muito jovens – quer dizer, gente que está estudando esse trabalho, essa obra – e pessoas importantes da cultura brasileira, como Inácio de Araújo. Então foi completo, foi maravilhoso.
A Mulher de Todos é de uma atualidade extraordinária. Fiquei impressionada como aquilo que os personagens do filme refletem repercutem até hoje – afinal, o filme pensa no século XXI, não é? A Ângela Carne e Osso é uma mulher do século XXI. Eu agradeço muito a Rogério por como ele completa isso: [ela é] uma rata, que é uma realmente uma definição inesperada.
É como Abismo (1977), um filme também restaurado, que passou no ano passado em Locarno [cidade na Suíça], com grande repercussão. Esse filme de Rogério é considerado um clássico – não só um filme experimental, mas um clássico! [Foi exibido] junto com Goddard, que também participava dessa mostra – que se chama A História do Cinema (L'histoire du Cinéma) – e com Hitchcock. Quer dizer, com os os grandes diretores do cinema, seja ele clássico, moderno, experimental, não importa. São grandes diretores de cinema.
AA: Eu encontrei um texto publicado pelo Sganzerla em 1970 que falava: “Feliz ou infelizmente, A Mulher de Todos é mais inteligente do que os críticos. Esse pecado ninguém perdoa. No entanto, é tão fácil fazer filmes mais inteligentes do que as opiniões da crítica.” O que você acha que ele quis dizer com isso? E você acha que se aplicaria até hoje?
HI: Que idade o Rogério tinha aí? Que ano foi?
AA: Foi em 1970, um ano depois do filme ser lançado.
HI: Um ano depois… ele tinha 22, 23 anos em 70.
É uma crítica que só pode ser feita por ele, que, em primeiro lugar, que era um crítico extraordinário dos melhores jornais de São Paulo: a Folha, o Estado e o Jornal da Tarde.
Quer dizer, um menino, grande crítico e que fez um filme. E esse filme! Evidentemente que A Mulher de Todos foi invejado, profundamente invejado. Era um filme popular, um filme que deu dinheiro, entendeu? Era um sucesso muito grande de público.
E pela primeira vez uma mulher ativa nesse protagonização [sic], porque existiam mulheres que foram maravilhosas, em filmes maravilhosos. Tinham vítimas como Joana D’arc (Victor Fleming, 1948) – esse filme extraordinário, que a atriz [Ingrid Bergman] enlouqueceu de tanta entrega que ela teve. Mas olha o personagem: personagem vítima. [As mulheres eram] sempre vítimas exploradas, sem possibilidade de conexões, por exemplo.
Agora eu me lembrei do filme do Coutinho [Cabra Marcado para Morrer, 1984], que apresenta a Elizabeth Teixeira, essa mulher fantástica… Essa mulher, ela, de alguma maneira, é tão grande quanto as grandes heroínas do cinema brasileiro. É como agora, não é? É o que acontece com Ainda Estou Aqui [Walter Salles, 2024]. É isso: essas mulheres que lutam, que vencem. E ali [em A Mulher de Todos], então, foi altamente sexy! Entrar na política através da sexualidade de uma mulher exagerada, de uma mulher que inclusive não é virtuosa, é uma louca e é uma trágica, porque ela é morta. O seu “maridinho” manda ela para o espaço, sorrindo!
E aí, em 1970, ele fala que a crítica não tinha inteligência, não estava pronta para esse filme e é isso: a gente estava num contexto social totalmente diferente, de 1970, ditadura. A gente superou isso, só que a gente tá numa nova onda de conservadorismo, de valores tradicionais da família.
AA: Você acha que esse filme vai ter uma recepção muito diferente ou você imagina que esses valores conservadores não mudaram tanto assim?
Ela já está tendo uma recepção diferente! Estão acontecendo coisas comigo realmente diferentes, eu acredito. Por isso eu passo adiante, porque outras pessoas também podem estar recebendo isso. É uma receptividade dos filmes e de mim mesma como atriz muito diversa do passado.
No passado, [eu] era essa mulher perigosa, que fazia personagens perigosos, meio incompreensíveis, então existia um certo perigo, uma certa desconfiança, uma certa inveja muito, muito forte dos meus parceiros e parceiras… também uma vontade muito grande de me comer. A palavra é essa: comer. O que os homens fazem com as mulheres? Comem. Sim. Mas isso não aconteceu. Não aconteceu! isso foi muito bom, que não aconteceu. A mulher de todos não se sujeitou a isso, não é?
E hoje eu tenho um público maravilhoso, um público de gente jovem, como você, que entende esses filmes estudando. Não é mais aquela coisa de pensar que é uma loucura a mulher lá de com os peitinhos de fora, não é nada disso. É uma outra receptividade. Isso me emociona profundamente, na verdade. Me emociona profundamente.
Eu tô tendo uma uma relação também diferente do que eu pensava com essa história de fãs. Os fãs fazem parte da alma da gente, com certeza. Eles trazem muito amor, muita consideração– e o artista é frágil, o artista sofre muito. Então, essa receptividade é maravilhosa! Continuem assim.
AA: Bem, você menciona o protagonismo feminismo muito forte no filme, e eu concordo – ela [Ângela Carne e Osso] é o centro de toda a narrativa. Porém, eu entendo que um dos pontos centrais do filme também é a postura do homem. São vários tipos de homens diferentes, que têm características distintas, só que com alguns pontos em comum. É uma sátira à masculinidade muito forte e muito atual também, não?
HI: Não só de masculinidade, como um pensamento político. Eu vi no Dr. Plits [personagem interpretado por Jô Soares], esse neonazista, o Elon Musk! É um doido! E você pensa que não existe, que é história de quadrinho, mas existe e esse personagem é fortíssimo.
Interessante que você falando isso, eu pensei nos homens do filme que, em geral, eu não penso muito. Aí eu vi aquele personagem do poeta louco… aquele personagem, ele é gay. Ele é gay! E nada além dele ser gay, no entanto, ele sai desse padrão. Ele sai cortando os ossos. E de alguma maneira isso já prevê essa onda de conservadorismo muito forte, não é?
É impressionante [como hoje] é bem maior. Porque a gente lutava contra a ditadura, então a gente precisava de liberdade. Agora a coisa é outra – inclusive, acabou a classe operária como uma leitura filosófica. Não existe mais o operário, existe o pequeno-burguês, a classe média, que quer também a sua liberdade, mas não mais dentro do do proletariado. Então, houve uma mudança e está havendo sem parar, sem parar, sem parar. O que está acontecendo, inclusive, no governo aqui no Brasil, essa essa onda desaprovando… Mas exatamente quem é que desaprovam? É a parte mais reacionária do governo do Congresso para variar.
AA: Li em outras entrevistas suas você comentando que “o filme foi feito para mim a partir de mim”. Poderia falar mais sobre essa sua relação pessoal com a Ângela Carne e Osso?
HI: Então, é porque como Rogério [Sganzerla] me convidou a partir do meu trabalho de atriz no Padre e A Moça [filme de 1966, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade]... Foi assim, com uma crítica que ele me convidou, então ele convidou a atriz. Ele viu que eu poderia fazer isso e aquilo. Era somente a atriz. Não tinha outro tipo de interesse quando ele me fez o convite. Ele me conhecia como crítico de cinema, viu todos os meus filmes, ele me conhecia. Quando ele me chamou para O Bandido da Luz Vermelha (1968), aí que ficou claro, né? A minha relação com a câmera dele, com o estilo…
Ele fez um filme, sim, a partir de mim. Esse personagem, ele seria a partir da atriz que foi feito. E ele esperou muito tempo para fazer esse filme. Ele tinha pensado numa outra atriz que ele gostava, Ittala Nandi, que tinha feito o [Teatro] Oficina, numa peça maravilhosa, O Rei da Vela, mas ele optou por mim. Não era a namorada dele, nem mulher, nem nada, somente a atriz.
Então foi a partir de mim mesmo. A partir de mim, do meu jeito de ser, das minhas brincadeiras, da risada, das ironias. O filme já estava escrito, existia um roteiro. Ele finalizou.

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AA: Então você acha que, de alguma forma, você conseguiu inserir suas particularidades de Helena na Ângela?
HI: Sim, foi isso que aconteceu. E é normal, não é? Inclusive, o Rogério, ele pensava nos atores realmente antes de fazer [o roteiro]. Paulo Villaça, mesmo, foi muito escolhido e querido por ele.
No outro filme, que ele já tinha falecido e eu fiz, Luz nas Trevas – a Volta do Bandido da Luz Vermelha [dirigido pela própria Helena Ignez em 2012], ele já tinha falado com Sérgio Mamberti para fazer o filme. Ele estava pensando na Bruna Lombardi, que fez. Então ali existe uma escolha de Rogério. O Paulo Goulart, também foi escolhido por ele. O Ney não foi, mas tem um certeza que ele aceitaria muitíssimo.
AA: Então puxando o gancho para essa relação entre vocês dois: em 2015, A Mulher de Todos entrou na lista da Abraccine como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempo, na 48ª posição, e outras três parcerias suas com Sganzerla também entraram, que é O Bandido da Luz Vermelha, em sexto, Sem essa, Aranha (1970), em 43º, e Signo do Caos (2003) em 97º.
E aí eu queria saber de você, se você consegue ter noção e reconhecer a importância – a sua importância, a importância dele, a importância da dinâmica de vocês – para a sétima arte brasileira, porque daqui de quem fala, que estuda cinema, essa importância é gigante.
HI: Muito obrigada. Primeiro lugar, obrigada.
Um dos meus trabalhos é ter o menor ego possível. Então eu tomo muito cuidado também com os elogios, né? Mas sim, acredito que sim, é importante. É uma diversidade, é um pensamento muito pessoal, é um estilo pessoal, que realmente enriquece o cinema brasileiro. Pela revista Rolling Stone, O Bandido da Luz Vermelha, foi considerado o quarto filme dos 10. E um ator que eu sou inteiramente apaixonada, muitíssima apaixonada, que é o Selton Melo, falou que esse era o melhor filme do mundo. O filme de um grande cineasta, não é? É isso
AA: E qual o que você acha que é importância de restaurar o filme? Porque normalmente a gente veria o filme sendo refeito com outros atores, outros diretores, um novo roteiro. Mas esse filme está sendo restaurado, sendo reexibido em sua forma original com restauração.
HI: Eu acho que é quase uma coisa cármica. Esse filme teria que ser restaurado. Ele veio antes, né? Os trabalhos de Rogério, eles vieram antes e agora que eles estão sendo compreendidos.
Eu vi O Abismo (Sganzerla, 1977), como foi, fora do Brasil. O Abismo era um filme difícil. Era um show de rock, entendeu? A projeção era um show de rock! Como aqui foi também. Engraçado, não é? Não tinha nada de impopular: era totalmente popular, mas para um determinado público – claro, só podia ser assim. Não posso imaginar o Bispo Malafaia adorando esses jeitos. Nunca.
AA: E para terminar, se você pudesse contar uma memória afetuosa da época que você estava gravando esse filme.
HI: É uma memória muito mista porque existiu medo – a qualquer momento aquilo podia se dar muito mal, muito mal.
O Bandido da Luz Vermelha ainda segurou um pouco o Rogério, tá entendendo? E que fez o sucesso danado e eles não quiseram se meter. Pegaram o Rogério, prenderam, rasparam a cabeça e soltaram. Não seguraram lá. Então esse medo que existia era muito grande. E [também] uma alegria extraordinária de estar vencendo o medo, não é? De conseguir fazer, de acreditar que aquele regime horroroso…
[Éramos] muito jovens e eles odiavam jovens, odiavam! E foi tudo feito por muitos jovens. Imagina aqueles jovens cabeludos, soltos, donos do país… [Eles] pegavam mesmo. Pegavam. E cabelo grande era surra.
E [ao mesmo tempo] a felicidade enorme de estar ali, com aqueles atores maravilhosos, aquela gente maravilhosa. Eu fui extremamente bem tratada, carinhosa. Afinal ninguém quis me comer, não é? [risos] Me amavam, era diferente. Então foi uma maravilha.
AA: Helena, já acabei a entrevista, mas quero fazer um comentário pessoal. Eu tenho feito algumas entrevistas para filmes que são lançados – não restaurados, lançados – e a gente sempre recebe o briefing de não entrar em questões políticas. E é muito fresco, muito bom ver você falando tão abertamente dessas questões, sem medo. Eu acho que é isso, a gente não pode mais voltar atrás e ver você com essa abertura para falar, para criticar, para se posicionar é incrível. Raro são os atores que fazem esse movimento hoje em dia. Então queria dar meus parabéns, não só por toda sua trajetória, mas também por hoje, por se posicionar ainda.
HI: É raro, realmente. Muito obrigada, viu? Muito obrigada por seu amor. Obrigada. Seu nome?
AA: Aianne.
HI: Mariane?
AA: Aianne.
HI: Aianne. Que nome, que maravilha.
AA: Eu não gosto muito… minha mãe quem inventou.
HI: Pois goste. Eu também não gostava do meu.
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