top of page
Background.png

Entrevista | Diretora e atrizes de A Natureza das Coisas Invisíveis falam sobre luto, afeto e força feminina no cinema brasileiro

  • Foto do escritor: Gabriella Ferreira
    Gabriella Ferreira
  • 26 de nov.
  • 9 min de leitura

Rafaela Camelo, Camila Márdila e Larissa Mauro em uma conversa sobre despedidas, memórias e a potência do encontrar.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Eleito pela crítica como o melhor filme brasileiro da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e vencedor do Prêmio Prisma Queer, A Natureza das Coisas Invisíveis marca a estreia de Rafaela Camelo na direção de longas com uma sensibilidade rara. O filme acompanha Glória (Laura Brandão) e Sofia (Serena), duas meninas de dez anos que se conhecem durante as férias de verão em um hospital e, ali, entre corredores, visitas e silêncios, encontram uma amizade capaz de iluminar o que há de mais íntimo no luto, na memória e no crescer. A obra chega aos cinemas no dia 27 de novembro de 2025 evocando temas profundos a partir do olhar infantil, transformando experiências delicadas em poesia audiovisual.


Nesta entrevista ao Oxente Pipoca, conversamos com Rafaela Camelo e com as atrizes Camila Márdila e Larissa Mauro sobre o processo de criação do filme, a origem da história, os desafios de filmar cenas de grande carga emocional e a força feminina que atravessa toda a narrativa. Elas refletem sobre a relação com o luto, a dignidade ao envelhecer, a importância das redes de apoio e a potência de retratar personagens femininas que cuidam, resistem e se encontram. Entre bastidores, memórias pessoais e escolhas criativas, a conversa revela as camadas invisíveis de um dos filmes brasileiros mais tocantes do ano. Confira a íntegra da entrevista abaixo:


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Oi, eu sou a Gabi, do Oxente Pipoca, uma página aqui do Nordeste dedicada a falar sobre cinema, especialmente o cinema brasileiro. É um prazer enorme estar conversando com vocês hoje.


Eu adorei o filme. De verdade, foi um dos meus favoritos do ano. Ele me tocou muito. E eu queria começar perguntando algo que ficou comigo depois da sessão: é um filme que fala sobre lutos a partir de uma ótica infantil, trabalhando temas fortes de maneira muito delicada, muito sutil. Queria saber como essa história nasceu, primeiro para a Rafaela.

Rafaela Camelo: É uma história que eu comecei a desenvolver em 2018. Na época, eu estava em busca de um tema, de uma história que pudesse ser o meu primeiro projeto de longa-metragem. Sempre fui uma pessoa muito interessada nesse lado mais assombroso da vida. Sempre fui espectadora de filmes e narrativas que falam sobre o luto e sobre a finitude. Nessa época, eu também estava trabalhando em um projeto no Ministério da Saúde e lidava muito com pessoas que estavam passando pelo hospital. Grande parte do meu trabalho era encontrar histórias de pessoas que usavam o SUS. E teve uma história específica que me marcou muito, de uma pessoa que tinha passado por um transplante de coração. 


A partir disso, surgiram os primeiros escritos desse filme, que foi se transformando bastante ao longo do tempo. Segui desenvolvendo o projeto durante a pandemia, e acho que isso deixou muitos reflexos no filme, principalmente essa questão do luto não vivido, não processado. A ideia era fazer um filme que refletisse um pouco dessa experiência, sem medo e com honestidade, mas colocando duas crianças no centro. 


Acho que isso facilita o acesso até para quem não gosta muito de olhar para esse tema. Acompanhando o luto junto com as crianças, existe uma possibilidade de “resetar” tudo o que a gente já viveu ou processou sobre luto e redescobrir as coisas com elas. Com o tempo, fui desenvolvendo outras camadas do luto no filme, entendendo também a morte que não é só biológica: a morte da identidade, a morte biográfica. Isso aparece muito na personagem da bisa, que enfrenta o Alzheimer. Então tudo isso foi virando um grande caldeirão de ideias. Eu não sabia exatamente para onde estava indo, mas sabia que esse era o universo que eu queria retratar.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Uma das cenas que mais me tocou é a da Camila com a Bisa. Aquele momento em que elas estão juntas, a Bisa não reconhece ela e, ainda assim, dá conselhos, pergunta se ela já disse que ama a avó. Aquilo me pegou muito. Não só pela despedida em si, mas porque, para quem tem um parente com Alzheimer, aquilo provoca uma reflexão muito profunda. Eu lembrei bastante, mesmo sendo cenas completamente diferentes, daquela sequência de Viva - A Vida é uma Festa entre o menino e a avó. As duas cenas me despertaram a mesma sensação. Eu queria saber, tanto da Camila quanto da Rafaela e da Larissa, como vocês veem essa cena. O que ela significa para vocês? Eu queria muito ouvir vocês sobre esse momento.

Camila Márdila: Nossa, essa cena me pega muito também. Toda vez que eu vejo, eu me vejo ali com várias pessoas. Eu penso na minha avó, penso na minha mãe, penso no meu pai. Acho que é um pouco aquele sonho de “e se eu pudesse reencontrar?”. Brinca com essa possibilidade de poder dizer as últimas coisas que você queria dizer, de ter aquela conversa que não aconteceu. Acho que todo mundo passa por isso, seja na experiência do luto ou no medo de um luto iminente.


É até difícil falar dessa cena. Eu fico meio empacada só de lembrar de ter feito ela com a Aline, porque o que ela realiza ali é uma coisa brilhante. Aquele abraço vale por toda a minha vida. Cada take que a gente fez foi uma experiência inesquecível de set, certamente uma das cenas mais marcantes que eu já fiz. Eu posso sentir aquele abraço até hoje.


E é um plano único no filme. Tem uma sustentação que eu acho muito bonita de ver, porque conforme a cena acontece, o espectador vai primeiro tentando entender o que está rolando e, quando percebe, já está completamente entregue, envolto naquele abraço. É maluco falar sobre esse filme, sobre várias cenas e muitos aspectos, porque tudo é tão da ordem do sentimento que às vezes é difícil racionalizar. A gente acaba só transbordando essas sensações.


Rafaela Camelo: Eu queria aproveitar, já que você falou dessa cena, que para mim também é uma das minhas favoritas do filme. Eu gosto muito dela e sempre me emociono muito, porque acho que ela toca profundamente nesse lugar do afeto, do coração, e também nesse espaço intangível do “se você pudesse dizer algo para a sua avó que já morreu, qual seria sua última palavra de despedida?”. 


E só compartilhando uma pequena curiosidade sobre essa cena: a primeira vez que eu li essa sequência com a Aline, a Aline Marta Maia, havia uma rubrica descrevendo a casa. Eu falava sobre como a casa estava fechada há muito tempo, descrevia o sofá perto da janela, algumas plantas secas, e então vinha o diálogo da Biza.


Quando a Aline leu essa cena, ela me disse: “Nossa, Rafa, eu amei que o que ela fala para as plantas, na verdade, é o que ela queria dizer para a neta. É quase o que a neta gostaria de ouvir.” E isso não estava no roteiro. Essa ideia de ela falar com as plantas surgiu da Aline, meio que na própria dinâmica da cena, trazendo esse mal-entendido que existe ali.


Quando ela falou isso, eu só respondi: “É.” E virou o que a cena é hoje. Ela fala com as plantas, mas a neta está ali, ouvindo, e tudo o que é dito para as plantas também vale para ela. “Poxa, ninguém cuidou de você. Como assim?” Na primeira versão, tudo isso era falado diretamente para a neta. E eu achei muito bonito esse mal-entendido que a Aline propôs, incorporando também as plantas secas da casa. Eu nem sei se você sabia disso, Camila. Acho que não, né?


Larissa Mauro: Comentando também, eu acho que essa cena, especificamente, que é tão marcante e tão bonita, fala em muitas camadas sobre a dignidade ao morrer. A morte como um direito digno. E também fala muito sobre o respeito pelos nossos velhos. A gente sabe da sociedade em que vive, o quanto ela é etarista e o quanto vamos abandonando nossos idosos, menosprezando saberes, histórias e uma sabedoria inteira. Isso é muito triste, e também diz muito sobre o tipo de sociedade que somos.

Então, quando isso aparece em uma obra cinematográfica, em uma construção artística, acho que resgata valores dos quais estamos carentes enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Ter dignidade no momento em que se deixa este mundo é algo muito profundo. E é algo que esse filme traz de uma forma muito forte. Me toca profundamente.

E só comentando rapidamente sobre o roteiro, a primeira vez que eu li esse roteiro, eu sabia que esse filme ia ser babado, porque eu amei muito o texto. Amei mesmo. E marcou muito, porque talvez tenha sido o melhor roteiro que eu já peguei para ler até então. Eu sou suspeita para falar, mas talvez tenha sido mesmo.


Era como se eu estivesse lendo um livro. Eu me emocionava, conseguia passar por todas as delicadezas, e aquilo me tocou profundamente. E aí, quando caiu a ficha de que eu tinha um convite para contar essa história, foi um combo. Foi muito, muito encantador.


Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Eu acho que “encantador” é realmente uma excelente palavra para definir o filme. Funciona muito bem. Outra coisa que me pegou bastante é essa questão do protagonismo feminino, de como o filme perpassa por temas como a mãe solo e de como ele é, basicamente, inteiramente feminino. Existe um protagonismo não só das mães, mas também das filhas, e isso me tocou muito enquanto eu assistia.


Há esse destaque para a força dessas mulheres, dessas mães que cuidam das suas filhas e que cuidam das suas avós. Tem aquela mãe que está ali no hospital todos os dias, fazendo tudo para que a filha cresça e tenha uma vida melhor, ao mesmo tempo em que também cuida da avó, e ainda enfrenta uma dificuldade de comunicação com a filha mais nova.


Eu acho que essa força feminina que o filme transborda é uma das coisas de que eu mais gostei. Eu queria que vocês comentassem um pouco sobre isso também.

Rafaela Camelo:  Ele é um filme em que os personagens homens estão muito posicionados nas bordas da história. Existe esse protagonismo escancarado das mulheres, mas eu confesso que, a princípio, isso não foi proposital. Eu tinha essas duas crianças no centro da narrativa e, quando comecei a pensar em qual seria o universo adulto ao redor delas, como roteirista eu queria construir algo que fosse sintético, que permitisse ao público entender rapidamente o contexto e o status daquelas relações.

E é impossível ignorar o fato de que, no mundo em que a gente vive, as mulheres são as responsáveis pelo cuidado. Então, a relação direta que eu poderia ter ali com as duas crianças era a das duas mães. E, se essas duas mães fossem mães solo, no momento em que elas se olham, o público já entende muita coisa: entende que a relação delas é consequência da aproximação das crianças, mas também entende que elas têm muito em comum.


Quando eu fui aprofundando essas mães, naturalmente surgiram outras mulheres. Veio a Biza, veio toda essa rede do campo. Na cidade, elas vivem uma maternidade mais solitária. No campo, quando chegam lá, tem a tia, tem a prima, e todo mundo cuida. Então, mesmo sem falar diretamente sobre o tema do cuidado, o filme acaba fazendo um comentário sobre isso.


E é impressionante como as pessoas notam esse aspecto. É um filme muito feminino, mesmo sem ter sido pensado assim desde o início.


Larissa Mauro: Eu acho que isso não foi exatamente pensado, como a Rafa comentou, mas inevitavelmente acaba sendo um retrato da nossa sociedade. A gente vive, infelizmente, essa grande epidemia da ausência parental e da sobrecarga colocada sobre o papel da mulher como cuidadora, guerreira, forte, aquela que dá conta de tudo. Mesmo que não tenha sido uma intenção direta, isso aparece porque faz parte do que vivemos e do que somos enquanto sociedade.


É impressionante como as mães precisam descansar, como precisam de apoio. O filme também traz essa camada da importância da rede de apoio. Falar sobre rede de apoio é fundamental. Ao mesmo tempo, mostra o esforço constante dessas mulheres para se manterem bem, para permanecerem sãs em meio a tantos abandonos e tanta sobrecarga.


Quando essas duas mães se encontram, se olham e trocam algo genuíno, a partir do vínculo das filhas, mas também expandindo para a relação entre elas, existe um alívio. Eu realmente sinto isso. Penso: graças a Deus elas se encontraram. É o que eu desejo para as mulheres que estão ao meu redor, que elas se encontrem, se vejam, se apoiem. Porque, independente de serem mães ou não, as mulheres têm percorrido uma rota muito solitária na nossa sociedade. E isso também é um tema importante para reflexão.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Gente, para finalizar, já que meu horário está terminando, eu queria fazer uma pergunta que faço para todo mundo que eu entrevisto aqui no Oxente. Queria pedir uma dica de filme ou série brasileira que vocês gostariam que o público assistisse, sem ser o filme que estamos comentando agora. Algo que vocês acham que pode ressoar em alguém, enfim, uma dica mesmo.

Rafaela Camelo: É um filme que eu vi recentemente no festival, chamado Mambembe, do Fábio Meira. É um documentário maravilhoso, fabuloso, que me pegou desde os primeiros minutos. O crédito inicial já é belíssimo. Eu já era super fã do Fábio Meira, mas esse filme é realmente muito maduro, muito cru.

Não quero contar nada sobre o que é o filme, até porque é muito interessante assisti-lo sem informações prévias. Mas é uma obra que eu recomendo sem nenhuma dúvida.

Larissa Mauro: Nossa, eu sempre bugo quando me pedem para escolher um filme. Até fiquei nervosa aqui, mas respirei e me veio um título que tem a ver com o que eu falei sobre etarismo: O Último Azul.

Acho que é um filme importantíssimo, que a nossa sociedade precisa assistir para enxergar os nossos mais velhos com dignidade — com corpos que ainda sentem desejo, que ainda têm muita vida e que merecem a nossa atenção, nosso respeito, nossa escuta e, principalmente, a nossa humildade em aprender com eles.

Camila Márdila: Ah, eu vou de Ela Volta na Quinta, do André Novais. Não foi uma influência prévia, mas lembrei agora porque me remeteu à personagem da Amanda, e a gente falando da cena da avó com a Simone… eu consigo enxergar uma relação nesse campo do emocional, algo que também transcende certas lógicas cronológicas da vida. Enfim, é um filme que me faz chorar tanto quanto O Natureza.




bottom of page