Entrevista | “O filme dialoga com nosso presente”: Luiza Mariani e Flávia Castro falam sobre “Cyclone”
- Oxente Pipoca

- há 7 dias
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, atriz e diretora comentaram como o filme ressoa na atualidade com sua protagonista à frente do seu tempo.

Após ser exibido em diversos festivais, como o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo, Cyclone enfim tem data para seu lançamento nos cinemas brasileiros: 04/12. Dirigido por Flávia Castro, o longa é baseado numa história real e acompanha a história de Daise “Cyclone” (Luiza Mariani), uma operária que divide seu tempo entre o trabalho em uma gráfica, onde garante seu sustento, e sua paixão pela dramaturgia. Quando ganha uma bolsa para estudar teatro em Paris, logo descobre que o maior obstáculo para realizar seus sonhos é ter nascido em um mundo onde as mulheres sequer são donas do próprio corpo.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de assistir o filme tanto no Rio (você pode ler a crítica aqui) quanto em São Paulo, onde ele foi eleito um dos melhores exibidos no festival (confira a lista aqui). Agora entrevistamos Luiza Mariani e Flávia Castro, que comentaram sobre o longo processo de produção do filme – cujas sementes remontam ao trabalho de Mariani como a protagonista no teatro, há 20 anos –, as escolhas feitas para distanciá-lo do modelo padronizado de dramas históricos, e sobre como o cinema pode ajudar a visibilizar as histórias de mulheres como Daise. A entrevista na íntegra está disponível abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Luiza, você interpretou a personagem Cyclone no teatro há 20 anos e desde então vem tentando trazer sua história para as telonas. Queria que você falasse mais sobre por que esse processo demorou tanto e quais as principais diferenças que observa em relação à sua performance no teatro e agora no cinema?
Luiza Mariani: Eu acho que um intervalo de tempo de 20 anos entre uma coisa e outra naturalmente faz com que elas sejam muito distintas. São personagens completamente diferentes, porque eu me tornei uma mulher completamente diferente ao longo de 20 anos e porque o mundo, as demandas, e os assuntos e as questões e onde esse filme está inserido hoje são muito diferentes de onde essa peça estava inserida em 2005, 2006. Eu era uma atriz de 25 anos, a peça falava de uma história de amor, tratava desse do encontro e do desencontro amoroso dessa personagem com o personagem do Oswald de Andrade.
Eu decidi transformar essa história em filme em 2007, e foi um processo muito longo, que levou muito tempo mesmo. E foi curioso ver como o filme, esse tempo de maturação, esse trabalho e de espera, como essa história ia ficando cada vez mais inserida dentro do presente, se fundindo com o tempo de agora. Então uma história que acontece em 1919, que parecia uma coisa tão distante, foi ficando cada vez mais urgente. É quase como se o tempo tivesse me dado uma grande oportunidade de fazer esse filme da forma como ele é hoje. Então eu acho que o interessante é isso, poder ter jogado com o tempo dessa forma positiva, ter renovado o sentido e o desejo da coisa ao longo dos 20 anos, e não ter ficado uma peça estanque.
Eu acho que o filme tem essa beleza, ele dialoga com o nosso presente, vai trazer questões como autoria, liberdade, autonomia financeira feminina, a questão do corpo, do desejo de não ser mãe, o desejo de ter uma profissão, de inscrever o seu talento no mundo. Aos quase 40 anos, numa segunda etapa da vida, essa mulher escolhe fazer um aborto porque ela quer escrever, porque ela quer existir através da escrita dela. Eu acho que são questões muito contemporâneas, então acho que o tempo foi um grande amigo no final das contas, ele foi um grande aliado do projeto.
Só para ficar mais claro, em 2005 isso era uma história de amor desencontrada e claro que isso foi perdendo completamente o valor ao longo desse tempo. Quanto mais eu entrava na história ia entendendo que não dava para contar uma história de amor. Era fundamental que a história colocasse essa mulher no centro, que o filme tratasse da subjetividade e do desejo dessa mulher. Ela estava muito submetida ao olhar masculino, tudo que a gente tem de referência dessa personagem histórica é sempre através de um olhar masculino. Então era importante que a gente construísse a Cyclone e que ela fosse o centro. Com as suas questões, seus desejos, desafios, impeditivos e impedimentos, mas estando ela no centro da história.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Flávia, você comentou em algumas entrevistas sobre a sua recusa em fazer um filme histórico tradicional, e assistindo ao filme isso fica muito perceptível, como no uso dos planos fechados, então há bastante esse jogo anacrônico. Como foi pensar e fazer essas escolhas que ajudassem a fazer essa abordagem histórica de maneira menos ortodoxa?
Flávia Castro: Quando a Luiza me mandou o roteiro para ver se se eu gostaria de começar uma conversa, eu senti que o roteiro já tinha essa possibilidade de ser um filme que não fosse datado. Ele se passa em 1919, mas os diálogos já eram super contemporâneos, não tinham uma coisa de tentar repetir a forma como se falava. E quando eu entrei, já tinha também uma coisa que eu achei saudável, que era um afastamento do personagem original. Já tinha uma construção ali, inspirada na história que a Miss Cyclone talvez pudesse ter tido se ela tivesse vivido mais tempo, mas já não era a história dela.
Eu já tinha feito um filme que se passava nas décadas de 1970 e 1980, o Deslembro. Mas quando penso nele, não penso como um filme de época, talvez porque fosse minha época, porque eu já eu fosse já adolescente naquele tempo. Mas mesmo no Deslembro eu já tinha essa questão de não querer marcar o tempo do figurino, de se ter um figurino totalmente atemporal, das pessoas terem sinais do tempo, mas que não fossem sufocadas pelo tempo dentro do filme. Ou seja, é para gente poder olhar para Cyclone e se ver nela, acho que para mim isso era fundamental. Por uma questão de gosto, eu prefiro um cinema que nos traga para o presente do que para o passado.
Eu tinha algumas referências que a gente consideraria de época, do cinema mudo, s grandes atrizes que os diretores europeus que foram para Hollywood deram espaço, ou que elas mesmas cavaram seu espaço. Como a Lilian Gish, que foi um pouco como a Luísa no Cyclone: ela tem um filme que eu amo, que é O Vento, do Victor Sjöström, ela quem produz, quem vai buscar o diretor para fazer o filme. Ou a Musidora em Les Vampires, de Louis Feuillade, que serviu de inspiração para o Irma Vep, do Oliver Assayas. Tem várias figuras assim no cinema mudo, então isso foi uma inspiração, mas justamente porque elas tinham algo de muito atemporal. Quando a gente vê esses filmes hoje, ainda tem alguma coisa de muito sedutora e bacana na forma como essas mulheres expressam algo além do tempo histórico em que elas se inserem.
Tinha essa vontade de pensar um formato que é um espelhamento desses filmes, de se ficar no quadrado, de limitar a personagem, o campo da nossa visão, de ficar muito perto dela, o resto era tratar como um filme contemporâneo. Eu acho que tem uma montagem abrupta, brusca, que eu acho que vem da vontade de trazer a violência do que a gente está retratando na forma. Tem o som, que é muito onipresente, tem a construção daquela São Paulo do início do século XX, com barulhos e sons. E também a forma como a Cyclone se alimenta disso para criar os diálogos que ela ouve, todas as situações que ela atravessa, os mundos que ela atravessa nessa mesma São Paulo, entre o cortiço e o [Theatro] Municipal, tem um trajeto, tem um bonde, tem mundos sonoros diferentes. Então, tudo isso era uma coisa que eu achei que era bacana para gente trazer para frente, a subjetividade dessa mulher, que no final é o que interessa; a mulher que cria e que está tentando, lutando para conseguir alcançar o desejo dela.

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Fico pensando em quantas Cyclones foram apagadas da história oficial, mesmo com suas contribuições relevantes, não só nas artes, mas no geral. Nesse sentido, como o cinema pode ajudar a dar visibilidade às histórias dessas mulheres?
Flávia Castro: Acho que ao fazer um filme desses, a gente está contribuindo com um grãozinho de areia para a história das mulheres invisibilizadas, apagadas. Mas eu acho que para além disso, talvez o que me toque mais é o conjunto das coisas que o filme compõe e que se relacionam ainda com esse presente, em que as mulheres são tantas vezes invisibilizadas, a falta de direitos sobre o próprio corpo, a não legalização do aborto no Brasil. São um monte de questões que o filme atravessa e que ainda estão absolutamente presentes, e são questões para a gente.
Luiza Mariani: Eu estava esses dias com uma amiga minha que está dirigindo uma série para o streaming e ela me falou que o orçamento dado para um homem nesse papel de showrunner de uma grande série é infinitamente maior do que o dado para uma mulher. A gente olha para o Congresso, o número de mulheres lá, mas também para a quantidade baixa de mulheres diretoras de cinema, sem falar dos outros cargos, como diretoras de fotografia.
Eu acho que isso também fala da gente agora. Acho que tem avanços, mas a gente parece que está permanentemente nesse lugar da conquista. Quer dizer, o tempo inteiro é uma luta para conquistar coisas que não deveriam precisar ser conquistadas. Então, parece que tem um permanente estado de alerta para que as coisas não retrocedam de novo e de novo.





