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Crítica | A Vizinha Perfeita

  • Foto do escritor: Gabriella Ferreira
    Gabriella Ferreira
  • 22 de out.
  • 3 min de leitura

Quando o racismo cotidiano se torna mortal

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Foto: Reprodução/Netflix


O documentário A Vizinha Perfeita, lançado pela Netflix na última semana e dirigido por Geeta Gandbhir, é mais do que uma narrativa sobre um crime, é um estudo meticuloso sobre poder, raça, vigilância e violência institucional. A morte de Ajike “AJ” Owens, uma mulher negra que foi assassinada a tiros por sua vizinha branca, Susan Lorincz, em junho de 2023, na Flórida, serve de ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre como microconflitos cotidianos se tornam tragédias quando atravessados por desigualdades históricas e estruturas legais permissivas.


O que torna o filme singular é sua recusa deliberada em adotar os códigos narrativos tradicionais do true crime. Não há narração em off conduzindo a percepção do espectador, nem depoimentos longos para moldar interpretações. Em vez disso, Gandbhir escolhe construir a narrativa quase exclusivamente a partir de registros oficiais e não mediáticos: imagens de câmeras corporais da polícia, câmeras de segurança, ligações para o serviço de emergência e vídeos caseiros. Essa estética de “material cru” não é gratuita, ela produz um efeito de imersão, mas também tensiona a relação entre verdade, mediação e poder.


Essas imagens, originalmente produzidas por agentes estatais para fins de vigilância e controle, são reapropriadas e ressignificadas. Historicamente, dispositivos de vigilância foram usados para criminalizar comunidades negras nos Estados Unidos; aqui, no entanto, eles se tornam ferramentas de memória, denúncia e contraponto ao discurso oficial. O documentário, nesse sentido, subverte o olhar policial, deslocando o centro da narrativa da autoridade para a comunidade atingida. Essa escolha revela a inteligência política e estética da direção, que entende que as imagens, quando retiradas do contexto institucional, podem se tornar testemunhos de resistência.


Outro ponto forte é como o documentário evidencia a banalidade do conflito que levou ao desfecho trágico. As tensões entre Susan Lorincz e as crianças negras da vizinhança não surgem do nada: são fruto de dinâmicas raciais profundamente enraizadas. As queixas reiteradas, a vigilância constante e a hostilidade cotidiana compõem uma coreografia do racismo ordinário, aquele que não se manifesta necessariamente em grandes reações à primeira vista, mas que estrutura relações sociais e distribui desigualmente quem pode ou não ocupar o espaço público. O que vemos, portanto, não é apenas um desentendimento entre vizinhas, mas a materialização de um conflito racial e de classe que antecede o disparo fatal.

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Foto: Reprodução/Netflix


A legislação da Flórida conhecida como Stand Your Ground emerge como um elemento central dessa trama. A lei, que autoriza o uso de força letal quando alguém afirma sentir-se ameaçado, tem sido amplamente criticada por sua aplicação desigual, beneficiando majoritariamente réus brancos e penalizando desproporcionalmente pessoas negras. O caso de AJ Owens escancara essa tensão: Susan Lorincz tenta se amparar nessa legislação para justificar o ato, mas a acusação e o julgamento a responsabilizam, um desfecho que, embora incomum, representa um marco importante no debate sobre justiça racial nos Estados Unidos. No entanto, o documentário também evidencia que a responsabilização individual não basta: a lei continua operando sobre uma estrutura desigual que favorece determinados corpos em detrimento de outros.


Ao final, A Vizinha Perfeita deixa um incômodo necessário. A condenação de Susan Lorincz a 25 anos de prisão traz um senso de justiça, mas não encerra a história: a família de AJ Owens continua a lidar com o luto, a comunidade com o trauma, e a sociedade americana com uma legislação que normaliza a violência em nome da “autodefesa”. O documentário denuncia, com crueza, como vidas negras continuam a ser negociadas no limite entre a legalidade e a violência, entre o direito de existir e o direito de “proteger-se”.


Mais do que relatar um caso criminal, a obra atua como um espelho das fissuras estruturais da sociedade contemporânea, onde vigilância, medo e desigualdade racial se entrelaçam de maneira letal. Ao inverter o uso das imagens de vigilância, Gandbhir oferece um gesto político potente: transformar ferramentas de controle em instrumentos de memória. A Vizinha Perfeita é um documentário incômodo, não por buscar o choque fácil, mas por revelar com precisão cirúrgica que a violência racial não é um acidente: é uma estrutura.


Nota: 5/5


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