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Crítica | Eu Não te Ouço (Festival do Rio 2025)

  • Foto do escritor: Aianne Amado
    Aianne Amado
  • 15 de out.
  • 3 min de leitura

Uma crônica do seu tempo, que deve ressoar por muito tempo

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Foto: Reprodução


Paira pelo Brasil a ideia de que o debate político só se tornou polarizado após a ascensão da corja bolsonarista ao poder. Embora haja certa verdade nisso, a suposição carece de ressalvas: antes, nas três primeiras décadas da nossa jovem democracia, o debate político entre a população média foi se tornando praticamente inexistente. Durante as eleições, é claro, surgiam conversas acaloradas sobre preferências e promessas, mas discussões mais frequentes, profundas, embasadas e reflexivas permaneciam restritas a círculos acadêmicos, militantes ou elitizados.


O sentimento extremo sempre associado à figura de Bolsonaro — seja de amor, seja de repulsa — levou mais pessoas a acompanharem o cenário político nacional e poderia, em tese, ter fomentado um debate mais amplo na esfera pública. O que se viu, no entanto, foi uma sociedade fraturada, movida pelo próprio extremismo que a opõe. Direita e esquerda tornaram-se como duas crianças birrentas que no fundo, desejam o mesmo, mas são incapazes de deixar o orgulho de lado e trabalhar juntas por um bem comum.


E por onde começar essa aproximação?


Caco Ciocler propõe uma possível resposta em Eu Não te Ouço, último filme de sua autointitulada “trilogia política”, que estreou no Festival do Rio deste ano.


A obra parte de um episódio real que sintetiza o surrealismo do pós-eleições de 2022: o caso do “patriota do caminhão” — bolsonarista que, para impedir a passagem de transportes em uma rodovia bloqueada por manifestantes pós-resultado das eleições de 2022, agarrou-se à frente de um caminhão em movimento e foi arrastado por vários quilômetros, viralizando nas redes.


Inspirando-se nesse evento, o roteiro de Ciocler, Isabel Teixeira e Márcio Vito constrói o único conflito do filme. Num exercício de criatividade admirável, os diálogos são também monólogos: quem está dentro do caminhão não ouve quem está fora, e vice-versa. Sem nunca fazer referência direta a figuras ou partidos políticos, os personagens se insultam, negociam e divagam, sozinhos e, ao mesmo tempo, um com o outro.


O extraordinário Márcio Vito interpreta ambos os personagens: o caminhoneiro e o patriota. O desafio é duplo — dar vida a personalidades opostas (ainda que, contraditoriamente, similares) e sustentar todo o filme praticamente sozinho – e ele cumpre com maestria, mesmo filmado quase sempre de perfil, com metade do rosto visível (a câmera se firma em pouquíssimos enquadramentos, correspondentes ao local do banco do passageiro), e quase sem o uso das mãos (que estão no volante ou no para-brisa). O prêmio de Melhor Ator garantido no Festival do Rio é mais que merecido.

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Foto: Reprodução


Embora o corpo de Vito seja o único em cena, não é sua voz não é a única. Ouvimos também a do próprio Ciocler, que, em tom documental, dialoga com os personagens, tentando compreender suas motivações. Suas perguntas, simples e pontuais, abrem espaço para longas digressões, ora filosóficas, ora cômicas, mas sempre atravessadas pela intolerância ao pensamento diverso.


Julgo ser impossível que um brasileiro assista a Eu Não te Ouço sem se reconhecer em algum momento, sem vir à memória uma discussão de família, uma perda de amizade ou um silêncio estratégico. A metáfora criada pelos roteiristas é potente – independentemente do nosso lado, de estarmos dentro ou fora do caminhão, o filme nos obriga a refletir sobre nossas próprias posturas e o abismo que nos separa.


Em termos de produção, o longa não esconde seu baixo orçamento: um cenário, dois figurinos, dois atores e gravação em estúdio. Ainda assim, Ciocler transforma as limitações em linguagem, aproximando a obra de uma crônica audiovisual, distinta, inventiva e digna de um país em que o cinema ainda é feito por amor.


Destaca-se também o trabalho de som, assinado por Mariano Alvarez (edição) e Ubiratan Guidio (direção), que convertem o normalmente insuportável barulho das estradas em elemento dramático, tornando esse um maravilhoso exemplo de filme em que o som é quem está em primeiro plano.


Em verdade, o excesso de repetições, bastante intrigante no início, torna-se cansativo na segunda metade. Apesar do aumento gradual do absurdo e do ritmo bem dosado, o filme perde parte de sua força com a insistência, comprometendo o impacto da mensagem – já clara, mas constantemente reiterada. Nem o excelente desfecho é suficiente para reverter por completo a fadiga.


Ainda assim, é impossível ignorar a importância social e a ousadia criativa da obra. Eu Não te Ouço é um filme independente que, por enquanto, ainda não tem previsão de lançamento em circuito comercial — uma perda considerável, aos olhos desta crítica. Trata-se de um filme paradoxalmente urgente e atemporal, que mereceria exibição obrigatória tanto nos cursos de cinema e audiovisual quanto nos almoços de domingo das famílias brasileiras.


Nota: 4/5


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