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Entrevista | “A gente não escapa da religião”: Marco Dutra reflete sobre o Brasil em Enterre Seus Mortos

  • Foto do escritor: Caio Augusto
    Caio Augusto
  • 31 de out.
  • 5 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, o diretor Marco Dutra fala sobre Enterre Seus Mortos, destacando o desafio de adaptar o livro de Ana Paula Maia e de explorar um universo apocalíptico inédito em sua filmografia.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Enterre Seus Mortos, novo longa de Marco Dutra, estreou nos cinemas de todo o Brasil no dia 30 de outubro de 2025. Na trama, Edgar Wilson (Selton Mello) trabalha recolhendo animais mortos nas estradas da fictícia cidade de Abalurdes. Ao seu lado estão Tomás (Danilo Grangheia), um padre excomungado, e Nete (Marjorie Estiano), sua chefe. Juntos, eles enfrentam os sinais de que um arrebatamento final pode estar próximo, em meio a um mundo em decadência e dominado pelo medo do fim.

O Oxente Pipoca entrevistou o diretor Marco Dutra, que falou sobre os desafios e as motivações por trás de Enterre Seus Mortos, adaptação do livro de Ana Paula Maia. Na conversa, ele reflete sobre como o filme aborda o fanatismo religioso, a decadência social e o medo do fim, temas que dialogam com o Brasil contemporâneo. Dutra também comenta sua busca por renovação artística, o papel da fé em sua filmografia e indica cineastas brasileiros que o inspiram, convidando o público a uma experiência sombria e reflexiva sobre humanidade e crença.

Caio Augusto (Oxente Pipoca): Para começar, queria te perguntar sobre esse novo desafio. Como o projeto de Enterre Seus Mortos chegou até você e como foi lidar com a adaptação do livro da Ana Paula Maia? Além disso, percebi que o filme tem muitas cenas externas, o que amplia o escopo da produção. Como foi esse processo técnico e narrativo?

Marco Dutra: O convite veio do Rodrigo Teixeira, bem no ano-novo de 2020. Ele me ligou para desejar feliz ano-novo e perguntou se eu já tinha lido Enterre Seus Mortos. Eu conhecia a Ana Paula Maia, já tinha lido outro livro dela, mas esse ainda não. O Rodrigo tinha os direitos do livro e me disse: “Acho que você vai gostar muito”. Coloquei na frente da minha fila de leituras e li logo em seguida.

É um livro conciso, afiado e duro, e gostei demais. O personagem Edgar Wilson e esse universo que a Ana cria, com lugares fictícios como Abalúdes e o Vale dos Cominantes, me seduziram muito. A ideia de fazer um filme fantástico, situado nesse pré-apocalipse, me atraiu de imediato. Era um subgênero que eu ainda não tinha explorado. Entrei em contato com a Ana, primeiro virtualmente, porque ela mora em Curitiba, e fomos ficando amigos ao longo do processo. Ela me deu total liberdade na adaptação.

Nos meus filmes, eu costumo filmar situações domésticas, é um universo que venho explorando com a Juliana Rojas e o Caetano Gotardo, meus parceiros de vida e de cinema. Mas esse filme tinha um aspecto de “estrada”, como a própria Ana chama, um “filme estradeiro”. Esse deslocamento, essa escala maior de um mundo em decadência, foi um desafio novo.

A Ana trabalha com referências bíblicas, kafkianas e elementos de literatura de gênero. A própria Companhia das Letras define o livro como um misto de faroeste, horror, novela policial e romance filosófico. Todas essas ferramentas me interessam muito, então o processo foi prazeroso. O difícil foi que, em março, a pandemia chegou. Escrever essa história nesse contexto drástico, com tantas perdas e incertezas, foi delicado. Mas também me fez compreender mais profundamente o tema do apocalipse, que é algo que a humanidade sempre revisita. Percebi que vivemos vários “apocalipses diários”, e que o medo do fim da humanidade faz parte da nossa formação filosófica.

Imagem: Divulgação
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Caio Augusto (Oxente Pipoca): Eu vi o cartaz de Quando Eu Era Vivo ao fundo da sua sala e me veio a curiosidade: como Enterre Seus Mortos se encaixa na sua filmografia? Ele seria uma síntese de trabalhos anteriores como Trabalhar Cansa, Quando Eu Era Vivo e As Boas Maneiras, ou marca uma ruptura, uma nova direção?

Marco Dutra: O que eu tento — e digo “tento” porque não sei o grau de sucesso disso — é não me repetir. É uma forma de manter viva minha paixão pelo cinema: me desafiar, buscar algo que renove meu interesse. Vejo cada filme como um tijolo que vou colocando na parede. Se isso forma um muro ou não, não sei (risos). Mas tenho um interesse constante por gênero e fantasia, algo que me acompanha desde criança. Acho que são ferramentas dramáticas poderosas, que permitem trabalhar fora dos limites do realismo.

Nem todos os meus filmes têm elementos sobrenaturais, mas quase todos têm um certo desassossego — um desconforto na gênese. Gosto de investigar por que sentimos medo, perturbação, mesmo cercados de amor e paixão. Quando revejo meus filmes, às vezes percebo estratégias repetidas, mas minha busca consciente é sempre pela renovação.

Caio Augusto (Oxente Pipoca): Enterre Seus Mortos lida muito com o fanatismo religioso e com a manipulação da fé. Como você acha que o filme dialoga com o Brasil de hoje, politicamente e socialmente?

Marco Dutra: No livro da Ana, os comportamentos ligados ao fanatismo são vagamente evangélicos. Conversando com ela, senti que precisaria expandir isso, adaptar, não copiar. Literatura e cinema são linguagens muito diferentes. Criei no filme a comunidade de Soroshi, que surge em meio ao desespero, prometendo salvação e um novo estado de existência. Situações de desesperança estimulam essa busca por fé, e me incluo nisso.

Ao mesmo tempo, temos o Tomás, um padre excomungado, e o personagem do Carlos Francisco, que tem outra fé. Essa multiplicidade é interessante, porque a Ana trabalha muitas referências bíblicas. E, de fato, vivemos cercados pela religião, frases, ditados, modos de pensar. Não dá para escapar dela.

A política se apropria da fé para disputar poder e território. Não sinto que preciso “criticar” isso, é um dado da realidade. O mundo é muito religioso, e o cristianismo e o islamismo são as maiores expressões disso. De certa forma, Quando Eu Era Vivo, Todos os Mortos e Enterre Seus Mortos formam uma trilogia da fé e da crença. Todos lidam com a morte, que é uma das bases das religiões. No Quando Eu Era Vivo, há ritos inventados e uma história de fantasmas; em Todos os Mortos, as tensões entre cristianismo e candomblé; e agora, em Enterre Seus Mortos, o fanatismo e o apocalipse.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): Por fim, temos uma tradição no Oxente Pipoca de pedir que vocês indiquem algum filme do cinema brasileiro que gostem, além de Paterno, é claro, para que nossa audiência possa assistir e conhecer outras obras.

Marco Dutra: Eu sempre indico Amélia, da Ana Carolina, e toda a obra dela. É uma cineasta que revisito sempre, cada vez descubro algo novo em Mar de Rosas ou Sonho de Valsa. Ela merece ser mais vista e discutida. Entre colegas da minha geração, adoro o trabalho da Gabriela Amaral Almeida. Estou curioso para ver o novo filme dela, O Animal Corajoso. Também cito o Rodrigo Aragão, que trabalhou em Enterre Seus Mortos e lançou O Cemitério das Almas Perdidas e Prédio Vazio, ótimos filmes dentro do gênero.

Historicamente, recomendo Humberto Mauro: Ganga Bruta é um filme que me marcou muito. Também São Paulo, S/A, do Person. E, claro, Mojica, Coutinho… poderia ficar horas. Por fim, destaco a obra do Walter Hugo Khouri, que foi muito importante para mim e para a Juliana Rojas. Descobrimos As Deusas e até fizemos um curta chamado As Sombras em homenagem a esse filme.



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