Entrevista | João Vieira Torres fala sobre ancestralidade e retornos em “Aurora”
- Vinicius Oliveira
- há 19 horas
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Diretor conversou com o Oxente Pipoca sobre seu longa, que foi exibido na 14ª edição do Olhar de Cinema.

Para quem saiu de casa para construir sua vida longe da família, retornar às origens nunca é um processo fácil. No entanto, pode ser libertador, como mostra João Vieira Torres em Aurora. Nascido em Recife e criado no sertão baiano, mas residente em Paris há mais de duas décadas, o diretor volta aos lugares onde cresceu, guiado por um misterioso sonho que o leva a investigar o passado das mulheres de suas famílias, em especial daquelas vítimas das opressões de gênero e do feminicídio. O longa foi exibido na 14ª edição do festival Olhar de Cinema, em Curitiba, onde concorre na Mostra Competitiva Brasileira.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar João Vieira durante o festival, onde o diretor falou de como a produção do filme (que se decorreu durante 10 anos) ressignificou diversas das suas relações familiares, bem como o processo de dar materialidade aos fantasmas de sua família e encontrar o delicado equilíbrio entre sua história e a das mulheres que marcaram sua vida. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Em que medida esse processo de produção do filme te fez sentir – ou não fez sentir – uma reaproximação e também uma reconexão com a sua família? Considerando esses vários anos já que você morou inclusive e fora do Brasil.
João Vieira Torres: Eu acho que para mim o processo do filme me fez entender que às vezes alguma distância é necessária, e que às vezes distância demais não faz bem. É um filme de uma volta a um lugar que o personagem que sou eu no filme deixou porque era um lugar de muita violência. Uma violência que eu não vivi de forma direta, mas que era algo que existia. De maneira quase preventiva ou intuitiva, eu disse: "Esse lugar, eu tenho que sair dele para poder sobreviver, para poder conseguir ser quem eu sou, coisas que eu não escolhi ser, mas que eu sou e que eu precisava sair desse lugar para poder ser”, o que é um percurso muito comum para pessoas que são queer ou que não são normativas nas questões de gênero e sexualidade.
Para mim, foi importante também ver que alguns desses fantasmas ou desses assombros que foram causados por fatos muito reais, pessoas serem assassinadas, feminicídios e outras coisas, existiam dentro de mim e que já não existiam no mundo. Não existiam no mundo da mesma maneira, mas ainda tinha um eco, e esse eco era um não dito, era algo que não era dito dentro da família, era algo que é preferível falar de alguma coisa outra que não incomode, mas esse “não incomodar” não incomoda quem não é tocado de maneira direta por essas histórias, quem não teve que lidar com elas, que não teve que ir embora, por exemplo.
E para mim, o filme é um objeto intermediário entre mim e algumas pessoas da minha família. Teria sido muito mais difícil voltar sem eu ter “um motivo”, uma desculpa, que era falar sobre minha avó, porque por mais que eu que eu seja de um jeito que as pessoas acolhem ou não, nós temos um elemento em comum que é um ancestral e essa ancestralidade podia a partir dela falar de outras coisas. Eu acho que que foi um objeto para reaproximar, para entender que certas proximidades não são realmente saudáveis, outras não precisam ser tão distantes e que isso nunca é um processo definitivo, é meio que uma dança.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Outra coisa que me chamou muita atenção é essa guinada – não devo dizer guinada, acho que é algo muito bem construído no filme – que é realmente quando você vai para aquele lugar mais sombrio que seu sonho já te alertava. E aí eu fiquei pensando muito na maneira como o filme, de certa forma, dá uma materialidade a esses fantasmas, aos seus seus pesadelos, você fazer esse retorno à sua casa, ao seu passado, e ver esses casos de feminicídio que estão presentes na trajetória da sua família.
Como foi para você pensar em termos técnicos junto com a equipe? Buscar dar materialidade a algo que parece tão abstrato, como esse conceito de fantasmas, ou ancestralidade? E como conseguir esse ponto de equilíbrio para que o filme não seja mais sobre você e que você dê esse espaço para resgatar e dar visibilidade às mulheres da sua família, tanto as vivas quanto as que já morreram?
João Vieira Torres: Quando eu digo fantasma, faço a diferença entre o fantasma e o ancestral, porque o fantasma paira quase buscando um corpo onde se manifestar. E normalmente, as coisas, as estranhezas que a gente percebe, inclusive nos sonhos, elas passam por elementos materiais, por imagens que às vezes são muito banais, mas que dentro de um contexto específico vão dizer que tem alguma coisa estranha aqui.
E aí eu acho que essa materialização veio muito num trabalho plástico sobre as imagens, sobre olhar coisas que estão à margem dentro dos arquivos, as coisas que a gente não presta atenção nas fotos de família, os olhares, os objetos que marcam o tempo. E muito teve relação também ao trabalho com as duas diretoras de fotografia, com quem a gente discutiu muito a imagem, a questão da proximidade, a questão de quão distante a gente quer estar das pessoas com quem estou, com quem meu personagem tá conversando, a presença do corpo de como esses corpos são filmados.
Mas eu também acho que de trabalho, tipo de rendeira mesmo, foi o som. Porque cada coisa, cada mosca, para mim era muito importante. Como é um filme muito falado, eu acho que essa voz não podia existir sozinha no mundo, ela tinha que existir para evocar. Não sei se você vê, minha narração ela começa quase num tom de “senta que lá vem a história”, que são sobre as pessoas que tão ausentes. São essas mulheres que tão ausentes, que são evocadas por mulheres que estão presentes hoje, que estão vivas e que tão no filme e que conversam comigo no filme.
Mas em algum momento das histórias delas – como quando não há arquivo sobre a tia que desapareceu porque teria recebido um corte de pano, ou foi desonrada, não sei o quê –, a minha voz vai contar essas histórias, e o que que são essas histórias? São uma redução de muitas versões dessa mesma história que me foi contada por pessoas diferentes. Aí eu peguei tudo isso com Débora [Viegas] e Marcelo [Caetano], a gente escreveu uma versão condensada que falava dos pontos de que se repetiam nessas histórias e que minha voz como narrador iria contar isso, mas que iria contar dentro de uma paisagem onde aquelas histórias aconteceram, mas onde não tem mais pessoas, só tem a casa abandonada, ou a árvore ou alguma coisa que evoca essas presenças. E muito do que é evocado é a partir do som, porque enquanto as coisas estavam acontecendo tem sempre som. Eu acho que que o som é isso, essa materialidade do que do que às vezes tá desencarnado.
Essa questão do equilíbrio foi uma das questões mais delicadas, porque um sonho é sonhado por alguém. Os sonhos são elementos, mas ao contrário do que muita gente acha, eu acredito que o sonho é um elemento de criação de comunidade. Então, você conta o sonho e a partir dele as pessoas vão interpretar ou vão dizer tal coisa, ou vão contar seus próprios sonhos, vão trazer coisas que evocam nelas, nas pessoas que não sonharam seus próprios sonhos ou outras histórias. Sou eu que tem essa chamada, mas ela me leva de maneira enigmática para as histórias de outras pessoas que não estão presentes. E essas pessoas são mulheres.
A parte mais calorosa do filme é quando eu estou com minha mãe e com minhas tias, apesar de toda a fricção que existe ali, onde tem uma questão com a minha mãe, que a gente sente que ela ainda assim tem uma questão com minha homossexualidade. Mas existiu o acolhimento da criança viada, da comunidade e tudo aquilo que importava. O feminino foi o mais acolhedor naquele momento da minha vida. Então para mim era importante de falar que essas mulheres que me acolheram, algumas delas tiveram fins muito trágicos por serem mulheres e de alguma forma, desde criança, quando eu era identificado antes mesmo de saber qual era o meu desejo, já diziam: "Ah, veado, mulherzinha”. Te associam o feminino algo que é inferior.
E tudo que porta o feminino pode ser objeto de violência. Então, eu não sou uma mulher, mas a homossexualidade ser associada com o feminino e, portanto, ser inferiorizada porque o feminino é inferior é uma questão de misoginia. Eu acho que no fundo no fundo das coisas tem uma questão de misoginia que é a base. O que não implica que na comunidade gay não existe a misoginia. Existe muito.
Então, para mim era importante tentar, por vez, encontrar pontos de conexão entre as histórias dessas mulheres, porque elas tiveram que ir embora, porque eu tive que ir embora e também pontos de conexão entre a gente e através do afeto e do acolhimento. Eu estou contando as histórias dessas mulheres, porque nos momentos antes de eu ter que ir embora de casa, as pessoas que me acolheram e que voltaram a me acolher quando eu retornei foram essas mulheres.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos aos nossos entrevistados que indiquem produções nacionais ao nosso público. Qual seriam suas indicações?
João Vieira Torres: Gostaria de fazer uma recomendação de um filme que foi lançado no ano passado pela pessoa que foi meu diretor assistente e escreveu o filme. Se chama Baby, é um filme do Marcelo Caetano e fala de uma maneira muito bonita da questão de como o cuidado pode ser uma forma de dominar. Toda relação afetiva tem suas dissimetrias, e isso é importante entender, mas o filme dá conta dos cuidados que a gente pode ter ao amar, e entender que o cuidado pode ser uma fonte de querer dominar o outro, e como lidar com isso.
E eu tenho outra indicação que não é do cinema, mas que eu acho que vai estar no Brasil em breve, é um espetáculo da Ana Pi, que fez o Noirblue, ela é cineasta e coreógrafa, e a nova peça dela se chama Atomic Joy, “Alegria Atômica”. E justamente fala de como a alegria pode ser um antídoto para esses tempos que a gente está vivendo, que são muito confusos para a nossa cabeça, e como a gente pode lidar com eles. Inclusive dentro da explosividade, que uma alegria explosiva pode ser um remédio para se ancorar no mundo.