Entrevista | “O cinema pode ser uma ferramenta catártica”: Akinola Davies Jr. fala sobre “A Sombra do Meu Pai” (Mostra de SP 2025)
- Vinicius Oliveira

- 24 de out.
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, diretor nigeriano discutiu as relações que o filme constrói entre a escala íntima dos personagens e as tensões sociopolíticas da Nigéria

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Agraciado com a Menção Honrosa do júri da Caméra D’Or no último Festival de Cannes, o filme nigeriano A Sombra do Meu Pai estreou na última segunda-feira (20) na 49ª edição da Mostra de São Paulo. O longa, que é a estreia do diretor Akinola Davies Jr. (o qual foi o corroteirista ao lado do irmão Wale), conta com elementos autobiográficos conforme acompanha os irmãos Olaremi “Remi” (Chibuike Marvelous Egbo) e Akinola “Aki” (Godwin Egbo) em uma jornada por Lagos com o pai distante Folarin (Ṣọpẹ́ Dìrísù) em meio às tumultuadas eleições de 1993 na Nigéria, que precederam um golpe de estado armado pelas forças militares do país. Você pode conferir a crítica do filme aqui.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Akinola Davies Jr. durante sua estadia em São Paulo para divulgar o filme na Mostra. O diretor comentou como a relação entre Folarin e os filhos espelha as questões vivenciadas na Nigéria naquele período, o uso da linguagem como ferramenta de colonização e resistência e como o cinema pode usar a escala íntima dos personagens para debater temáticas sociopolíticas gerais de um país, além de oferecer várias recomendações do cinema nigeriano para o público brasileiro. Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): O filme parece ser muito inspirado pela perda do seu pai, e sinto que há uma busca em correlacionar a perda da inocência que os irmãos enfrentam diante do luto com o próprio luto que a Nigéria enfrenta naquele contexto de um golpe de estado. Como você trabalhou esses elementos que poderiam ser entendidos como autobiográficos para construir a narrativa do filme?
Akinola Davies Jr.: Meu irmão [Wale] escreveu um curta-metragem e, quando tivemos a oportunidade de produzi-lo, o curta se chamava A Sombra do Meu Pai e era principalmente sobre os meninos e o pai deles. Então, quando soubemos que tínhamos a oportunidade de fazer um grande filme, obviamente estreitamos o relacionamento, questionamos a perda do nosso pai, questionamos como ele se sentia, como eu me sentia, para incorporar isso aos personagens. Além disso, durante grande parte das nossas vidas, as pessoas nos contaram histórias sobre o nosso pai. Então, isso nos ajudou a criar o personagem do pai no filme.
Mas quando se trata de conciliar a vida familiar com a política do país, queríamos encontrar um equilíbrio com algo que representasse essa perda da figura paterna de certa forma. Como você cria algo que possa imitar a sensação da perda da figura paterna? E, nesse período da história nigeriana, quando deveríamos retornar à democracia, o candidato era alguém que representava uma espécie de pai da nação, e todos estavam muito animados para estar sob a proteção e orientação desse político. Não que ele fosse uma pessoa perfeita, mas era alguém que as pessoas reverenciavam e que estavam entusiasmadas com a ideia de que ele se tornasse presidente. Então, quando o ditador cancelou as eleições, todos ficaram muito desanimados, a geração da minha mãe ficou muito desanimada, e a reintrodução da democracia se tornou muito traumática.

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Quando fizemos muita pesquisa e entrevistas com jornalistas e outras pessoas na época, percebemos que aquele período era bastante semelhante à nossa história. Parecia um reflexo, em uma escala maior, da nossa própria história. Então, unimos esses dois elementos. Não foi fácil porque, como você sabe, em 1993 não havia redes sociais, não havia smartphones, não havia internet, pelo menos não na Nigéria. Então, tínhamos que depender dos meios de comunicação da época, como jornais e rádio, para obter informações. Além disso, tínhamos que confiar nas conversas entre as pessoas e na forma como elas transmitiam as notícias umas às outras.
E também nos baseamos na iconografia dos militares, no que eles representam: o verde, suas armas, seus tanques, e como as pessoas se sentem quando veem os militares. Porque, para muitos nigerianos, grande parte da violência perpetrada na Nigéria é cometida pelos militares. Então, simplesmente vê-los da maneira como são, desperta muitas lembranças nas pessoas. Acho que, para o filme, isso também nos ajudou a captar a atenção do público, porque, com a família, há uma atenção mais sutil em relação à forma como eles interagem, mas precisávamos de uma atenção maior, uma sensação maior de ameaça para eles e para a população em geral. Então, sim, acho que muito disso estava presente na concepção de como escrevemos a história e em como as pessoas se lembram daquela época no exército.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): A maior parte do filme é falado em inglês, mas também vemos vários diálogos em iorubá e naijá. A língua é sempre um instrumento muito forte de colonização, então como você pensou os momentos em que as falas em iorubá e naija deveriam aparecer e que significado você pensa para esses idiomas dentro do filme?
Akinola Davies Jr.: Ótima pergunta. Obrigado, Vinícius. Acho que tivemos um grande debate sobre se estávamos tentando contar uma história que fosse muito fiel à realidade do trabalhador, do homem da classe trabalhadora. Na Nigéria, como você disse, o pidgin [naijá] é a língua falada pelas pessoas nas ruas. É uma derivação do inglês, do pidgin, do antigo iorubá, do hausa, do igbo, de todas essas línguas, de forma coloquial, como se você misturasse tudo e obtivesse o pidgin nigeriano. Então, queríamos que quem assistisse a este filme reconhecesse a língua que as pessoas falam nas ruas. Por isso, era importante para nós incluí-la.
Você está completamente certo quando diz que a língua é uma ferramenta colonial, porque o inglês é algo que foi imposto aos nigerianos. Neste momento, é a nossa língua nacional, mas, ao mesmo tempo, é algo que permeia a sociedade, porque para ser considerado para empregos, para ser levado a sério ou para demonstrar que você pertence a uma classe social mais alta, é preciso falar inglês.
Mas há algumas coisas na língua iorubá que não podem ser traduzidas para o inglês. É uma língua muito poética e, de certa forma, mítica e mitológica. Mas, igualmente, há um sentimento de orgulho. Sabe, o povo iorubá tem orgulho de sua língua, seus costumes e tradições, assim como o povo igbo e o povo hauçá. Então, tentamos garantir que as pessoas iorubás mais velhas tendessem a falar iorubá entre si, especialmente se já se conhecem. Se vocês têm familiaridade, tendem a conversar entre si. Se vocês saem na rua, talvez falem mais inglês, e se estiverem no nível da rua, talvez falem mais pidgin.
Então, era uma dança muito delicada para lembrar os momentos certos para as pessoas falarem, porque, há um personagem na obra que é Igbo, então ele não fala iorubá. Portanto, alguns dos diálogos eram em inglês e pidgin. Já quando Folarin encontra Corridor (Olarotimi Fakunle) na rua, é praticamente tudo em iorubá. Quando ele encontra a tia Seyi (Tosin Adeyemi), é praticamente tudo em iorubá. Portanto, trata-se apenas de descobrir o quão familiar é o relacionamento entre os personagens, e isso depende da linguagem que eles usariam.
Para os meninos e o pai, essa conversa é algo bastante geracional, sabe? A geração da minha mãe fala iorubá, mas nós fomos para uma escola de inglês. Não aprendemos iorubá na escola. Só falamos em casa. Então, nossa compreensão disso não é tão forte quanto a daquela geração, mas se você mora na Nigéria, consegue entender. Para nós, os meninos talvez não tivessem tanto acesso à sua própria língua quanto deveriam. É por isso que eles sempre falam em inglês.

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Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): O Brasil também foi um país que sofreu com ditaduras, como visto agora em "Ainda Estou Aqui". Penso numa semelhança entre esse filme e "A Sombra do Meu Pai" no sentido de usar essa dimensão íntima da família para retratar um período ditatorial. Como você acha que usar essa escala micro de uma família ajuda a entender os cenários políticos de um país no cinema?
Akinola Davies Jr.: Excelente, excelente pergunta. Acho que o que pode acontecer quando as pessoas passam por um período traumático é que o cinema pode desempenhar múltiplas funções. Uma delas é reviver esse trauma, o que, para mim, não é algo que me interesse fazer, porque acho que as pessoas já sofreram o suficiente. Mas acredito que outra função do cinema é ser uma ferramenta de cura. Pode ser uma ferramenta catártica. Isso pode ajudar as pessoas a reconhecerem que passaram por algo e pode ser, sim, pode ser uma experiência coletiva.
E acho que, respondendo mais diretamente à sua pergunta sobre como podemos encarar a família, é que também não queremos nos concentrar no aspecto macro. Queríamos nos concentrar no aspecto individual, em como isso afeta o homem e seu dia a dia em família, pois isso ajuda a contextualizar como as pessoas vivem nessas situações. Se, por exemplo, nosso personagem viesse de uma família rica e os filhos também fossem ricos, a relação deles com o pai, o contexto da ausência dele, mudaria, porque talvez ele não more longe. Talvez eles morem longe, talvez ele esteja viajando para o exterior ou algo assim.
Mas como a história se passa em um ambiente de família da classe trabalhadora, em uma área rural, e ele precisa viajar para uma cidade grande como Lagos, é possível perceber as questões políticas em jogo. Há escassez de combustível, não há gasolina suficiente. Isso em um país como a Nigéria, que tem as maiores reservas de petróleo da África. Então podemos ver que todos estão falando sobre essa eleição e como reagem a ela. Acho que, mesmo no fato de ele não ter recebido seu salário há algum tempo, já se percebe o quão disfuncional é o país sob uma ditadura, porque os ditadores não estão interessados em prover para o povo. Eles estão mais interessados em oprimir o povo. Isso permeia todos os aspectos da vida.
Mas acho que, se você mantiver uma ideia simples e uma história simples, é uma maneira melhor de humanizar as pessoas, em vez de se concentrar sempre na política. A política estará sempre presente e sempre terá um impacto na história, independentemente do nível, mas acho que, no fim das contas, tudo se resume à história e à capacidade de criar uma conexão com esses personagens.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos que nossos entrevistados indiquem filmes brasileiros que achem que o público deva assistir. Mas vou mudar minha pergunta para pedir a você indicações de filmes nigerianos que o público brasileiro deve conhecer. Quais você indicaria?
Akinola Davies Jr.: Vou começar com meu primeiro filme, Living in Bondage, de Chris Obi Rapu. É um filme clássico de Nollywood [a indústria de cinema da Nigéria], muitas pessoas falam que é o primeiro filme de Nollywood. Ele não é perfeito, mas definitivamente está em alta estima em Nollywood.
Meu segundo filme é Eyimofe: This is My Desire, de Arie e Chuko Esiri, eles são ambos irmãos. É um filme que foi feito, eu diria, entre 2020 e 2021, é um lindo filme sobre pessoas tentando deixar a Nigéria e obter um passaporte, e as circunstâncias que elas têm de lidar.
Meu filme seguinte é All The Colours of the World Are Between Black and White. É um filme incrível de Babatunde Apalowo, uma história de amor queer, gentil, bem autocontida. Acho que merece mais atenção do que tem, porque a temática dele é bem difícil na Nigéria, onde o governo tem reprimido muito o movimento LGBTQ. Mas é uma história de amor muito sensível.
Outro filme é Mami Wata, de C. J. Obasi. Esse filme é sobre mitologia e ganhou em Sundance há alguns anos. Preto-e-branco fantástico, é um filme bem estilizado. Outra indicação é Lionheart, de uma maravilhosa e grande diretora nigeriana, chamada Genevieve Nnaji. Ela é tipo a Halle Berry do cinema nigeriano, é incrível. E por fim, o último filme é o meu, A Sombra do Meu Pai, meu longa de estreia, que vai estar nos cinemas brasileiros no próximo ano.





