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Entrevista | “Já é transgressor só pelo fato de ser queer”: equipe e elenco de “Apenas Coisas Boas” falam sobre o filme, sua mistura de gêneros e caráter provocador

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • há 1 dia
  • 8 min de leitura

Longa goiano estreou na 14ª edição do Olhar de Cinema e foi tema de entrevista feita com o Oxente Pipoca.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

2025 está se revelando um marco para o cinema goiano. Primeiro com o lançamento de Oeste Outra Vez, de Erico Rassi, e agora com Apenas Coisas Boas, de Daniel Nolasco. Ambientado entre o interior de Goiás e a capital Goiânia, o longa acompanha a relação do fazendeiro Antonio (Lucas Drummond/Fernando Libonati) e do motoqueiro Marcelo (Liev Carlos). Inicialmente pautada pelo desejo e pelo cuidado, ela gradualmente se reformula e se converte em algo mais agridoce e cercado de mistério.


O longa foi o último a ser exibido na Mostra Competitiva Brasileira, na 14ª edição do Olhar de Cinema em Curitiba, e o Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar o diretor Daniel Nolasco, os atores Liev Carlos, Igor Leoni e Renata Carvalho, a produtora Cecília Brito e o diretor de fotografia Larry Carvalho. A equipe e elenco comentaram a respeito dos usos de elementos não só do faroeste no filme, mas de outros gêneros, bem como a construção de uma narrativa assumidamente queer e as transgressões que ela causa, em especial pela construção das cenas de sexo e intimidade dos personagens.


Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Daniel, queria perguntar sobre os diferentes gêneros que você trabalha no filme. Ele começa com esses elementos de faroeste e depois migra para algo mais do drama/thriller. Como foi pensar a coesão interna do filme para que essa mudança de tom não fosse um choque e alienasse o público?


Daniel Nolasco: Isso foi uma questão que tinha desde o roteiro, porque eu ficava com medo que quando tivesse a virada, a sensação é que o público estaria vendo um outro filme que tá começando. Porque muda tudo: o cenário, o tom, todo o elenco. Pensando nisso, uma das estratégias foi estender a transição dele chegar até Goiânia. Meio que fazer o espectador fazer essa caminhada, está saindo de um lugar, indo para outro. A gente também está saindo de um gênero, de um registro, e caminhando para outro.


Também teve o som. A gente tem uma primeira parte que é muito silenciosa, basicamente não tem nenhum som industrial, e na segunda parte, à medida que ele [Antonio] vai se aproximando de Goiânia, essa paisagem sonora também vai ficando cada vez mais urbana. No roteiro, a cena dele com a policial era logo no começo da segunda parte, mas na montagem a gente tentou jogar essa cena o máximo que podia para frente para causar um certo estranhamento, um certo questionamento do espectador que a gente acreditava que ajudava a fazer essa transição. Mas sempre foi um risco.


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Para vocês, como foi trazer essa ótica queer para uma obra que trabalha com um gênero que está sempre discutindo a masculinidade, como é o caso do faroeste? E também no sentido de fazer uma relação que não cai no tropo da tragédia normalmente associada aos casais LGBTQIA+ no cinema, mas que também não é idealizada.


Daniel Nolasco: O western é esse gênero muito “heterocêntrico”, que surgiu para construir essa ideia do conquistador do Oeste norte-americano. E eu queria trazer esses códigos para dentro do universo gay e homoerótico. A gente já tem alguns exemplos, como O Segredo de Brokeback Mountain ou o Andy Warhol em Lonesome Cowboys, mas eu também queria trazer isso para dentro do universo goiano. E aí a gente se apropria dos códigos e coloca essa narrativa desses dois personagens que vão se apaixonar.


Liev Carlos: Da minha perspectiva, eu acredito que minha construção se pautou muito em duas frentes. Uma em relação à construção de Marcelo enquanto si próprio. Porque é um personagem que, embora tenha uma presença muito forte no filme, não tem muitas ações nem muitas falas também. Minha constatação principal pesou bastante sobre isso, em construir uma relação com o Lucas [Drummond], que fosse verdadeira, que as pessoas pudessem se identificar. E ao mesmo tempo trazer individualmente para o Marcelo uma certa pressão, uma certa melancolia talvez ou uma certa nostalgia de algo que ele não tivesse. O desejo dele ter uma família porque é essencialmente sozinho, diferentemente do Antônio que escolheu ficar sozinho por uma circunstância pessoal. Então, tentei trazer esse tipo de motivação de pressão para o personagem.


Igor Leoni: Eu não sou do núcleo do faroeste do filme [risos], mas tenho um certo distanciamento com a cultura queer porque tenho gostos e interesses considerados muito heteronormativos. Então, meu personagem, Eduardo, ele já se encaixa mais em uma numa figura que está dentro desse universo LGBT, mas eu tentei realmente não pensar muito nisso. Eu fui pelo que o texto me indicava, eu tentei seguir as indicações do Daniel e a relação com Fernando [Libonati] ajudou muito também na construção cênica. Para mim era muito importante que fosse um trabalho que fosse tranquilo para ele; sendo tranquilo para ele, estava tranquilo para mim também.


Renata Carvalho: Eu acho que Helga [personagem da atriz] é a que mais defende o amor no filme, ou uma manutenção do amor. E nela mesmo estão esses códigos da religião, do casamento, e ela não se conforma que um amor de 40 anos tenha acabado assim. Ela é o tipo de pessoa normativa que acha que o casamento tem que durar para sempre, então acha absurda essa falta de amor por parte do Antônio, então é o que motiva ela a pensar que alguma coisa horrível aconteceu, o fato dele estar muito feliz. 


Mas, como artista, o que mais acho interessante são os beijos, o no chuveiro ou no lago, por serem mais demorados. No final, a cena do Fernando beijando que dura mais de dois minutos, é quase uma forma de se passar o amor, por mais que seja no meio do mato, mas a mensagem que passa é a de que a gente pode amar, ainda mais que a gente não espera ver dois homens barbados se beijando. A gente escuta e vê as pessoas se remexendo nas poltronas do cinema, desconfortáveis, mas eu acho que tem que se criar aquele imagético de que esses homens “masculinos” também podem amar. 


Cecília Brito: Eu gosto muito dessa construção desse amor romântico, porque eu amo a cena do da moto, para mim ela tem toda uma construção romântica idealizada muito leve. Se fosse uma garotinha e um cara ali seria a cena mais romântica do cinema nacional, mas é meio inconcebível ter isso com esses dois personagens que são dois homens. O que eu acho mais interessante é porque essa heteronormatividade, para mim pelo menos, ela permeia muito o filme. Apesar de estar toda hora subvertendo ali, ela está o tempo inteiro tipo tirando uma onda, mas eu gosto muito dessa disso, de estar desconstruindo mesmo ali dentro desses códigos uma afetividade, do cinema queer e tudo, mas também dentro desses outros códigos do cinema heteronormativo.


Larry Machado: Quando a gente vai falar do western e dessas figuras masculinas, acho que a gente sempre está olhando para algumas coisas que são muito padrão. Eu acho uma forma muito libertária o que a gente fez, porque a gente vai pegar esses padrões e tirar uma perna aqui, e vai derrubando ela aqui em vez algumas formas ali, e elas caem às vezes por uma ironia ou não. 


Eu acho que o fetiche sempre está trabalhando com isso, essa fantasia, uma coisa que vai do onírico, existe uma realidade, mas a gente, dentro de nós mesmos, pode fazer o que quer. Também compartilho muito da fala da Renata sobre o tempo do beijo e do sexo, parece que é um momento que a gente vai respirar fundo e em algumas cenas, mesmo no cinema, parece que fica com uma respiração segurando ali naqueles nessas cenas, depois passa e aí você solta. 


Eu acho que os filmes de Daniel sempre têm muito a dizer sobre isso. Sempre é uma parte sensorial que diz muito sem a gente abrir a boca para transmitir em palavras. E essas partes sensoriais sempre me pegam muito assim, são coisas que a gente às vezes não consegue destrinchar e dizer exatamente, mas que fica meio que no sentimento mesmo, no calor do corpo, no tesão também.

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Vinícius Oliveira Rocha: Eu vi aqui no festival “Salomé”, também com a Renata Carvalho, que também aposta no transgressor e provocador dessa perspectiva queer, inclusive nas cenas de sexo. Para vocês, como essa transgressão é essencial para se combater o moralismo, inclusive dentro do cinema?


Renata Carvalho: O cinema queer tem como base a questão da provocação. Toda a história do queer, não só dentro do cinema, mas como teoria, como movimento social, vem desse lugar da provocação, da colocação, do questionamento, da dissidência. Então, acho que a partir do momento que você se propõe a fazer um filme que está dialogando com o cinema queer, isso tem que estar na base de fundação do filme e da narrativa, e isso pode vir de várias formas. 


Daniel Nolasco: Dentro do Apenas Coisas Boas, eu acho que para além da questão erótica, acho que vem pela questão do universo, a gente imaginar essa história no interior de Goiás. A gente sabe que Goiás é um estado conservador, temos o senhor Ronaldo Caiado como representante [risos], e a gente tem essa cultura do sertanejo, que é uma cultura muito heterocêntrica e LGBTfóbica também na base. E filmar nesse lugar acho que já provoca alguns questionamentos, porque se você vai fazer um cinema sobre isso, você tem que correr risco.


Renata Carvalho: Eu acho ótima essa questão, porque somos corpos para dar prazer, não para receber. Então quando a gente coloca esses corpos se amando – seja inclusive na pegação –, se desejando, gozando, beijando, eu acho que você cria também possibilidades de amor e de futuro. As pessoas queer não se veem envelhecendo nos relacionamentos, e eu acho que a gente precisa trazer um pouco essa liberdade.


Cecília Brito: Estava pensando justamente isso: parte muito de um lugar que também é transgressor só porque é queer. Algumas questões só são transgressoras por isso. A partir do momento que não são corpos aonde você aceita que podem estar fazendo aquilo ali, que podem estar pegando, que podem estar dando um beijo longo, maravilhoso, que podem se amar ali, ter um romance e tal, aí eles já viram cinema transgressor. Eu assisto de vez em quando a novelas, acho muito bom como as cenas que precedem o sexo são sempre muito fortes, intensas e tudo mais. Já os casais gays é “pega na mão, me dá um abracinho” ali e tal [risos]. É muito interessante como só é transgressor para determinado tipo de representação.


Renata Carvalho: Acho que a transgressão tá no sentido de que o que a gente faz é privado. Então, as pessoas acham que a gente tem que continuar fazendo no privado, continuar escondido. Então a gente torna isso público.


Igor Leoni: Eu concordo com a Cecília. Estava aqui pensando, em Cidade Baixa tem uma cena do Lázaro Ramos fazendo sexo oral na Alice Braga em um beco, e não lembro disso gerar comoção. E em Cama de Gato tem uma cena de estupro com o Caio Blat, outro personagem masculino e uma personagem feminina. E essa cena de estupro hétero não gera tanto repúdio quanto dois homens se amando de forma consensual. 


Liev Carlos: A mim me chama muito a atenção em relação ao que se entende por gratuidade. Eu acho que o cinema do Daniel é muito importante nesse sentido porque ele desafia as concepções sociais do que é ser gratuito, do que é ser funcional, se há uma narrativa ou não. E eu acho muito paradoxal assim, porque o cinema meio que nasce como que um atestado de veracidade da imagem ou do fato. É como se a sociedade buscasse forçar um estranhamento numa coisa que é natural e parte da vida. Então eu acho um cinema muito muito relevante socialmente, justamente porque ele questiona o estranhamento que não está no filme, mas na sociedade.


Larry Machado: Eu estava pensando nos “lugares de pegação” no filme. A gente mostra ali um espaço de verdade dentro da geografia, entendendo que aquilo é muito comum em qualquer cidade que você vai. E às vezes eu vejo que isso é muito novo para muita gente, o que eu acho muito doido, mas também entendível. 


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos aos nossos entrevistados que façam indicações de obras nacionais para o público assistir. Pode ser um favorito, uma produção recente que gostaram ou que se relaciona com a temática do filme, no caso aqui de “Apenas Coisas Boas”. Quais seriam suas indicações?


Renata Carvalho: Vento Seco [dir.: Daniel Nolasco].

Daniel Nolasco: Os Imorais, do Geraldo Vietri.

Igor Leoni: Amarelo Manga [dir.: Cláudio Assis].

Liev Carlos: Mr. Leather [dir.: Daniel Nolasco], porque é o meu preferido.

Cecília Brito: Salomé [dir.: André Antonio], até para prestigiar nossos talentos locais [aponta para Renata Carvalho].

Larry Carvalho: A Luz [dir.: Souleymane Cissé], que eu vi aqui no festival e gostei muito.


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